[entrevista: Raphael Brandão] "não existe meritocracia no café"
com uma tonelada de café comprada, Café di Preto, marca lançada em dezembro de 2020, propõe novo protagonismo dos negros na cadeia de produção do café
click here to read this interview in English
[este texto foi editado às 12h30 do dia 24 de agosto para corrigir datas e dados]
No senso comum, pensamos que o futuro é múltiplo e o passado, um só1. Enquanto o futuro é visto como algo passível de ser moldado e direcionado, o passado estaria cristalizado e imutável – quando, na verdade, todo passado é uma costura de retalhos selecionados. Não os disponíveis ou os encontrados pelo caminho: os escolhidos.
É praxe afirmar que a História é escrita pela mão de quem domina. E o que essa mão faz é abafar e remover da versão final o que lhe parece pouco lisonjeiro. Aprender a olhar para o passado e reinterpretar a História não é uma tarefa fácil. Cerzir as partes puídas que foram escondidas, reintegrar à linha do tempo fatos que foram ignorados, desafiar o cânone – como a historiadora, gastrônoma e doutora em nutrição, alimentação e saúde Lourence Alves falou nesta entrevista – tem seu preço. Geralmente, o descrédito de quem questiona o status quo.
A transformação dessa História oficial, que ganha mais vieses e narrativas justapostas, é algo novo, tecnologicamente falando. Hoje, não precisamos escrever em papel, traduzir e esperar meses até que ele cruze oceanos para se dispersar pelo mundo. A colcha de retalhos da História está sendo costurada ao vivo, em múltiplas frentes – na academia, na sociedade civil e especialmente no cotidiano. Trazer a leitura a contrapelo da História oficial para o dia a dia – o samba-enredo da Mangueira em 2019 é um exemplo disso –, nas conversas ao vivo ou virtuais, é a nossa forma de alinhavar o novo entendimento à colcha de retalhos histórica.
Raphael Brandão tem 30 anos e se aproximou do mundo do café por acaso, em 2019, ao trabalhar em uma microtorrefadora como assistente – embalava os grãos torrados e colava adesivos. Em questão de meses, sorveu o que pode do entorno e começou a fazer suas próprias pesquisas. Entendeu que "negro" e "café" foram retalhos historicamente arrematados ao redor de escravidão. E quis rasgar a fazenda.
Criou a marca Café di Preto em dezembro de 2020, realocando sua raça e classe em outra posição no mundo. Na prática, como faz Regina Tchelly, ele aponta novos caminhos tentando mudar seu entorno.
A realidade do café especial é a de sacas caras e salários baratos. E a realidade do mercado de trabalho brasileira é de pessoas brancas recebendo cerca de 45% a mais do que as pretas e pardas. Donos de fazenda e sítios são majoritariamente brancos: 46,65% versus 8,28% pretos. Pardos são 44% dos proprietários rurais.
"Todo café produzido por pessoas pretas acaba sendo um microlote", definiu Raphael, em meio a uma digressão enquanto conversávamos por telefone. Foi difícil transcrever essa conversa. Entre contextualizações, desabafos e muitas interferências no sinal da operadora (a ligação caiu três ou quatro vezes), a entrevista virou uma conversa. Mantive, na transcrição, apenas as perguntas principais, sem as minhas falas e comentários entremeados nas respostas de Raphael, deixando o texto seguir um fluxo de consciência.
Entre 2020 e 2021, Raphael usou o torrefador da empresa nas horas vagas e lançou os cafés Dandara e Esperança, homenagens a mulheres negras que são referências históricas: Dandara de Palmares e Esperança Garcia, a cozinheira que escreveu uma carta-petição em 1770. À época, Raphael não conhecia o mercado de café tão a fundo, e os fornecedores ao qual tinha acesso eram brancos.
O primeiro volume, previsto para durar três meses, esgotou-se em pouco mais de um mês, em junho de 2021. Por questões de estrutura, teve de parar de usar o torrador do local em que trabalhava e a marca entrou em latência em setembro. Em outubro, ele começou uma campanha em plataforma de financiamento coletivo para comprar o equipamento e começar a trabalhar exclusivamente para sua marca.
As coisas não saíram como o esperado: depois de seis meses de campanha, ele arrecadou R$ 14.800 e teve de desmontar seu computador – o melhor equipamento que ele tinha em mãos – para rifar as peças. Conseguiu mais de R$ 10 mil. Mais as doações pontuais vindas de amigos e desconhecidos, chegou a R$ 40 mil e pode dar uma entrada no equipamento.
“Continuei trabalhando onde eu estava, saí em fevereiro deste ano, porque eu não tinha backup financeiro para pagar as contas. O que me deu segurança para sair do trabalho foi porque moro na casa de um amigo que se mudou da cidade, o Mário. Ele me isentou do aluguel se eu tivesse algum problema de dinheiro”, relembra. Outro amigo da época da faculdade de Engenharia de Controle e Automação, Rafael, viu sua geladeira vazia e abasteceu sua despensa no início de 2022. “Por três meses eu sabia que ia fazer dar certo, porque tinha onde morar e o que comer. Mário e Rafael são dois amigos pretos. Na época que eu a gente se conheceu, eu não tinha essa consciência racial. Eles me ajudaram no comecinho da faculdade e me ajudam hoje em dia. O Café di Preto existe hoje porque tenho essa rede de apoio, essas amizades”, diz.
Nascido na Região dos Lagos do estado do Rio de Janeiro, Raphael está há 11 anos em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, tendo morado na capital e em Niterói por curtos períodos. Raphael começou a nova fase do Café di Preto com um torrefador na sala de casa, em Nova Iguaçu, no dia 19 de abril de 2022, tendo em mãos cafés de quatro fornecedores negros. Em agosto de 2022, chegou à marca de uma tonelada de café comprado.
O Café di Preto é o que se pode chamar de "eupresa". Raphael trabalha sozinho em compras, torrefação, venda e envio por transportadora, aproveitando momentos em que o estoque esgota para resolver burocracias.
"Quando comecei, torrei e vendi 240 kg em oito meses, mas na época eu ainda não tinha fornecedores pretos. Mês passado [julho de 2022] fez quatro meses que estou trabalhando só com pessoas pretas. E aí foram 240 kg em três meses!", comparou. Estou torrando em média 80 kg por mês. É pequeno, mas está crescendo", comemora.
Os 90 minutos de entrevista foram editados e reorganizados para melhor leitura.
Como está funcionando a sua rotina no Café di Preto atualmente?
Como acabou o primeiro estoque, estou resolvendo burocracia. A parte da rotina que eu mais gosto é torrar café. Agora estou definindo o perfil de torra do Dandara, do seu Ivan Santana. A parte da torra, por mais que seja um processo repetitivo depois que se fixa o perfil sensorial… eu gosto muito de ver o café entrando cru e saindo torrado. Vejo quão recompensadora é a luta. Tô torrando na sala de casa ainda, preciso reformar os fundos para receber as pessoas e dar cursos. Mas é muito gratificante saber que foi alguém que cultivou, que beneficiou e aí chegou até mim. Por mais que torrar seja a mesma coisa, tem sempre um gosto especial de conquistar algo que é meu.
Essa semana mesmo eu tava lembrando. [Torrar café] tem um gosto mais especial ainda porque eu trabalhei [em uma cafeteria] sem receber nem salário mínimo. Na época, eu achava que aquelas pessoas eram minhas amigas. A partir do momento que viram meu crescimento [com a marca Café di Preto], parece que queriam colocar um cabresto para que eu continuasse sendo só empregado. Saí sem nada certo da cafeteria, eu nem tinha torrador. Abri mão de muita coisa, do pouco que eu tinha, para conquistar isso aqui. É uma parada que fico com medo, de virar exemplo de superação. Saiu uma matéria com o [fornecedor de café] Ivan Santana no g1. Ele comprou uma parte da fazenda em que trabalhou dos 11 aos 13 anos de idade na produção de café. E aí tem pessoas que acham que é meritocracia, que se você não desistir, você consegue. Quantas pessoas pretas hoje tem uma propriedade? Quantas lutam e não tem uma cafeteria, um torrefador? Eu fico com pé atrás de usarem assim minha história também. Eu sei que dei sorte, porque tive uma grande rede de apoio. Tive saúde mental abalada, tive momentos que eu ia chorando trabalhar, era desgastante e muitas vezes outras pessoas não conseguem superar essas barreiras. A taxa de suicídio é maior em homens pretos.
Eu sempre falo que superei, mas não quero ser um exemplo de história de superação. Eu acredito que tem que ser fácil pra todo mundo. Não existe meritocracia na sociedade que a gente vive, não existe meritocracia no café.
Para adentrar o mundo do café tive que adentrar numa jornada de trabalho do café que não era necessário. O café é uma ferramenta transformadora para abrir portas. É como a Sueli Carneiro fala na entrevista com o Mano Brown: há mais pessoas que lutam do que pessoas que vencem.
Você presta serviço para outras marcas de cafés ou para cafeterias?
Estava fornecendo o grão Dandara para espresso de uma cafeteria no Rio de Janeiro, mas como tive que repassar o aumento [de gasolina, de café, etc], a parceria descontinuou. Quando eu comecei, eu precifiquei errado, porque tava com medo de não vender. Precifiquei sem margem de crescimento para a empresa. Só pra sair no empate todo mês. Eu ficava preso à democratização do café especial, mas não adiantava meu produto ser barato e a empresa fechar. Aí as coisas não rodam. Tô deixando um pouco de lado a democratização do café para fazer a empresa crescer, e aí lá na frente consigo democratizar.
No café especial, tem muito microlote de R$ 70 o pacote de 250 gramas. Mas parando para pensar, praticamente todo café feito por uma pessoa preta é microlote: o Seu Romão só tem três sacas, no máximo, pra mandar. O Café di Preto é uma parcela de uma parcela [do café especial]: além de ter sido plantado por uma pessoa preta, a torrefação também é. As pessoas precisam enxergar que o café é caro por raridade.
Nesse novo momento da marca, você está com fornecedores negros. Quem são as pessoas que trabalham com você agora e quais são os cafés produzidos?
Estou com grãos da Família Peixoto (Santo Antônio do Amparo – MG), Família Romão (Perdões – MG), Ivan Santana (Cabo Verde – MG), e Luís Carlos Gomes (Santa Tereza – ES). Os cafés estavam em pré-venda [até 12 de agosto] e têm os mesmos nomes da primeira fase da marca, Esperança e Dandara, mas são bebidas de perfis diferentes dos que foram torrados para a primeira leva. São homenagens à Esperança Garcia e à Dandara de Palmares.
O Dandara estou fazendo com um moca catuaí amarelo do Ivan Santana. É um café de entrada, então procuro grãos com perfil sensorial de caramelo, de chocolate, um sensorial mais sensível e amistoso para ser a porta de entrada. Quem nunca bebeu café especial, se começar por um fermentado com notas de maracujá… [não completa]. Quem começa a beber meus cafés começa pelo Dandara.
O Esperança é um catuaí 99 vermelho, processo natural, do Luiz Carlos Romão. É mais frutado, um passo à frente do Dandara. Tem caramelo, mas o que se destaque é a nota de fruta amarela, como pêssego, damasco. Tem [notas de] rapadura, muito doce e frutado. Acho até enjoativo quando torro e esqueço os baldes abertos.
Agora tenho um café novo que é um conilon especial Rita de Cássia, um canephora clone 153, do seu Luís Carlos Gomes. O nome é uma homenagem à irmã dele. Esse café tem as características do conilon, é mais amendoado, mais fechado. Tem nozes, cacau. Fui até lá torrar com eles uma vez. Esse é o café que tem tudo para ser o café base junto do Dandara. O seu Luís Carlos confiou em mim e me mandou as sacas para mim sendo que eu só tinha para pagar o frete. Só de ouvir minha história, ele confiou em mim. Eu nunca tinha falado com ele na vida.
O quarto café é o Auxiliadora, que no momento é um catuaí amarelo natural da família Peixoto. O nome é uma homenagem à cunhada da dona Neide, com quem trato dos cafés. A Auxiliadora ajuda no cultivo e na colheita dos grãos. Esse café é mais delicado, com notas mais florais e fruta amarela. Comprei pouco dele, não sei se vai ser o mesmo grão sempre.
E tem a Dona Edilaine, esposa do Romão que é homenageada no café fermentado. Tem oito anos a propriedade deles. Ele ganhou na loteria e comprou esse pedacinho de terra e produz grãos de 87 pontos para o Esperança e Edilaine. Este é um catuaí 99 vermelho fermentado e seco em terreiro suspenso. Tem notas ácidas, como bala de tamarindo, maracujá e mel com limão. A primeira safra teve só 30 kg e todo mundo elogia muito. Vamos tentar colocar esse no Coffee of the Year esse ano.
O Edilaine, pela história da propriedade e pelo perfil sensorial, é o meu preferido. Até quem não entende muito de café sabe que tem algo nesse café. O casal Romão faz tudo, desde a colheita, beneficiamento e tudo o mais. O trabalho deles é pequeninho, de formiguinha, e estão fazendo uma parada incrível. É uma grandiosidade de cafés que fazem com as ferramentas que eles têm. Eu sou só a ponta da lança. A torra é importante, mas o trabalho que há antes de mim é incrível.
A história do café no Brasil é de fazendeiros que começaram a investir na produção depois de outros ciclos econômicos enfraquecerem, como o da cana-de-açúcar. As pessoas escravizadas, no entanto, eram quem detinham a tecnologia, o know-how para trabalhar com aquele produto. Ainda hoje, a mão de obra de pessoas negras nos pólos de produção de café são contratadas para trabalhos físicos, como na colheita. Mas na outra ponta da cadeia, no barismo e na torra, não se vê pessoas negras, pelo que li em entrevistas suas.
Tem uma fazenda que vai sediar um evento e que produz café desde 1852. O conhecimento do evento seria enriquecedor, mas não estou preparado para ambientes que são ambientes de sangue e dor. É algo que me dói ainda. Não consigo ir. A estrutura está lá de pé, a casa colonial, a senzala. Essas pessoas que estão à frente tem uma preocupação com o meio ambiente, mas não se vê uma preocupação racial, literalmente. Tem que haver uma reparação. As fazendas de café de sucesso, toda a história dos caras começa no período da escravidão.
Essas pessoas não têm culpa que seus trisavós enriqueceram através da mão de obra forçada de pessoas pretas e indígenas, mas não existe por parte dessas pessoas uma iniciativa de reparação, de botar a mão na consciência, de criar um fundo para incentivar o ingresso de pessoas no mundo do café. Não existe esse debate. Todo mundo tem orgulho de falar que é a quinta geração a produzir café, mas isso é questão de matemática: não tem como produzir desde 1850 e não ter usado trabalho escravo em algum momento.
O único programa no Brasil que visa dar oportunidade para pessoas pretas se especializarem no ramo de café é dos EUA, da Phyllis Johnson [cofundadora e diretora da BD Imports]. No total, recebi um aporte de R$ 10 mil [da bolsa Dona Ivone, do Coffee for Equity] para fazer curso, para me deslocar para São Paulo para fazer cursos que são fora da minha realidade.
Minhas ambições com o Café di Preto é para além de ficar rico e ter condições de comprar casa e carro. Quero ser um agente de transformação para que outras pessoas pretas façam curso de torra, de barismo e outras coisas. Pra tudo isso precisa de dinheiro. É um passado trágico, as pessoas deveriam procurar limpar isso de alguma forma. Aqui no Brasil eu não encontrei nenhuma iniciativa assim [como da Coffe for Equity].
Tem algumas iniciativas, como o incentivo de grupos indígenas e de gênero, mas de pessoas pretas não se fala. Teve uma reportagem do g1 que falou do ciclo do café e todas as pessoas que falam na matéria são brancas. E quando aparecem duas pessoas pretas nos oito minutos de vídeo, elas estão carregando saca e passando rodo no terreiro. Continua tudo igual: pessoas brancas na condição de poder e as pretas na condição de mão de obra barata e sem qualificação, porque não há essa preocupação de inseri-las e qualificá-las. A preocupação é de ser sustentável, ecologicamente correta.
Até mesmo a questão do povo africano que veio, tinha cultivo de café que é da Etiópia, talvez alguns povos tivessem expertise de outro tipo de produção agrícola [similar ao manejo do café]. Trocou-se a mão de obra preta porque era preta e não porque era de baixa qualidade. Quem torrava os cafés [no período da escravatura] eram as pessoas negras. Quando fui ao Museu Afro Brasil, tinha uma exposição sobre cana-de-açúcar. E tinha a parte que falava de café. Tinha um torrador tipo o bolinha, mas grande. O que me separa daquele torrefador negro? A estrutura de poder e racial é a mesma. Eu sou uma pessoa preta que torra café pras pessoas brancas. O cara hoje que é rico e dono de supermercado, por exemplo, não enriqueceu diretamente pela mão de obra escrava, mas a família de uma fazenda de café, sim. O herdeiro do café é diretamente beneficiado pela escravidão. A divisão é a mesma: pessoas brancas com posse, poder e terras e pessoas pretas como mão de obra de esforço. Isso me deixava muito mal de pensar no começo. Aos poucos me sinto um agente de mudança, mas não ainda como eu queria. Quando eu dou um Google em "negro" + "café" agora aparece umas duas fotos minhas, e não só imagens que retratam a escravidão.
E hoje, um ano e meio depois, você tem encontrado mais pessoas pretas estudando e preparando café?
A maioria das pessoas que me seguem são pretas e trabalham com café. Donos de cafeterias pretos, ou que trabalham de alguma maneira com café e querem vender ou servir meu café. Às vezes, o que falta é a gente se enxergar. A mãe de um amigo meu pediu para contar a minha história para as crianças que ela dá aula: "elas precisam ver que estão na sua realidade, que você está perto delas". O que mais me pega até hoje são mensagens que agradecem pela marca existir ou por eu não ter desistido. É uma ferramenta de mudança e virada de chave. Sei que não sou a primeira torrefação negra no Brasil, mas coloquei isso no financiamento coletivo para chamar a atenção. A Conceição Evaristo fala: "não importa se você é o primeiro, o que importa é abrir portas".
Eu quero saber o que o Café di Preto pode gerar de oportunidade para outras pessoas. O café pode transformar vidas, mas desde 1727 vem transformando a vida das mesmas pessoas: as brancas. Eu quero que as pessoas pretas também sejam contempladas com isso. Pode ser como agrônomo, barista, torrefador. As pessoas pretas enxergarem oportunidade em ser mão de obra qualificada, ou abrir uma pequena marca, trabalhar numa cafeteria ou abrir uma. Vai muito além de ficar rico. Minha maior riqueza será daqui 20 anos ter impactado positivamente a vida de outras pessoas.
Ano que vem quero prestar serviço de torra, de ter uma linha de café para espresso de cafeterias. Mas ainda fico apertado pela questão do estoque. Eu tenho problemas que todas as torrefações tem, só que eu também tenho problemas únicos. Quantas fazendas pretas produzem mais de mil sacas de café? As [fazendas de pessoas brancas] grandes sempre produzem mais que mil. Para o Café di Preto crescer tem um gargalo, que é o volume produzido em uma fazenda preta. Se me derem um milhão de reais não consigo comprar um milhão de reais de café de pretos. E eu não quero abrir mão de trabalhar só com grãos feitos por pessoas pretas. Desde que comecei [a comprar apenas de fazendas de pessoas negras], é uma satisfação indescritível, saber que essas pessoas que me mandaram esses cafés lutaram muito pelas pequenas propriedades que elas têm. Preciso fomentar o ciclo que vem antes de mim.
Tudo é político. O café é político, porque tá muito ligado ao que aconteceu no passado. Assim como a riqueza foi herdada, a pobreza também passa de geração em geração, como diz um amigo. É difícil quebrar o ciclo da pobreza. Não tem como a pessoa comprar um café especial se o café comum tá R$ 20 o quilo, se tá R$ 9 o litro de leite. Para pessoas pretas acessarem o café, não depende só de mim. A situação do Brasil, além de ferrar a pessoa preta e pobre, ela quebra o meu rolê, porque o meu produto fica apenas na classe burguesa, que são pessoas brancas. Não quero que fique nichado. Além de toda a correria, precisa de um movimento político do café para fora, e de fora para o café.
Não é justo uma pessoa preta ter que ganhar na loteria para comprar uma terra se tem gente que herda uma fatia de capitania hereditária até hoje.
A marca Café di Preto tem menos de dois anos de história, mas tem alguns marcos importantes, como o estoque de três meses vendido em pouco mais de 30 dias. Qual era o "funcionamento ideal" que você desejava no início da marca? Era parecido com isso?
Como dessa vez vem mais [volume de] café, achei melhor fazer pré-venda. O preço dos cafés aumentou. Se eu pegasse R$ 10 mil em café, seria um volume menor do que os R$ 10 mil de café há uns meses. Comprei nove sacas, isso dá quase 600 kg. Com a pré-venda consigo ter mais dinheiro em caixa para para pagar meus fornecedores, que são de agricultura familiar. A pré-venda gera um boom e eu já pago uma parcela a mais do que tinha prometido na negociação.
Aumentei o estoque para não precisar quebrar a oferta. Comprei mais café para conseguir vender os 12 meses do ano sem susto.
No início, eu queria ser uma marca para trazer representatividade, que vendesse o café de pessoas pretas. Na época, era só eu torrando, eu não tinha ambições, eu era a única pessoa preta na cadeia de produção. Eu ainda quero ser representativo, quero que seja democrático, mas quero que o café mude de maneira substancial a vida da pessoa. Dar um curso para ela e ela entrar na área, na parte que for da cadeia de produção.
As pessoas pretas ainda estão descobrindo o mundo do café. Tem gente que ainda nem sabe que terá a vida mudada pelo café.
APOIE A FOGO BAIXO
A newsletter fogo baixo é uma publicação independente da jornalista Flávia Schiochet, financiada pelos seus leitores. Todos os ensaios, entrevistas e edições extras estarão sempre disponíveis gratuitamente, e você pode ler (ou reler) acessando o arquivo da newsletter. Se você gostou desse conteúdo, compartilhe:
Se você chegou por aqui porque um amigo encaminhou esse link, assine:
Para apoiar meu trabalho, considere assinar esta newsletter mensalmente por R$ 10 ou anualmente por R$ 100 – assinantes pagos recebem desconto de 10% em todos os cursos ministrados por mim e recebem agradecimentos públicos nominais no rodapé de todas as edições da fogo baixo enviadas por e-mail.
Há também a opção de PIX do valor que quiser pelo e-mail schiochetflavia@gmail.com; a compra de livros por links afiliados no post dicas de livros: biblioteca básica da FOGO BAIXO; ou imprimir os cartazes gratuitamente para colar por aí e espalhar a palavra.❤️🔥
Ouvi uma reflexão similar a essa ao final do episódio Programação Neurolinguística (PNL) tem base científica? - Parte 2 de 2 do podcast Naruhodo!, de Ken Fujioca e Altay de Souza, e achei perfeita para falar do tema café e pessoas negras.
Fiquei muito emocionado com o texto. Que o mundo do café tenha cada vez mais pessoas pretas e que o Raphael continue crescendo e alcançando mais e mais público e servindo de ponte para o crescimento do plantio de café por pessoas pretas!
Olha, essa news bateu aqui muito forte. Muita admiração pelo trabalho do Raphael e obrigado por trazer esse assunto, Flávia.