[entrevista: Lourence Alves] epistemologia preta
"A cozinha de santo é uma lente possível para a gente pensar o mundo", defende Lourence Alves, historiadora, gastrônoma e doutora em nutrição, alimentação e saúde
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Recebi mensagens entusiasmadas sobre a edição #2 | fragmentos de arroz, e a base de assinantes da fogo baixo aumentou gostosamente. Agradeço a todos pelo interesse e apoio ao meu trabalho.
O recorte que fiz foi considerar que, se a produção ou o fornecimento de fragmento de arroz tivessem aumentado, haveria algum dado relevante ANTERIOR à polêmica que circulou nas redes sociais, bem como o fragmento de arroz teria sido adotado por políticas públicas voltadas à segurança alimentar. Os dados que reuni (apesar de algumas instituições não terem colaborado) não comprovam que a produção ou a venda de fragmentos de arroz tenham aumentado, e sim que o arroz (inteiro ou quebrado) está caro por falta de estoques públicos que regulam a oferta e preço de alimentos básicos.
Ter publicado este texto me trouxe indicações preciosas de leitura. O texto Fragmento de arroz, política fundiária e culturas alimentares tradicionais, de Lourence Alves, foi uma delas, enviado pela minha amiga Ana Spengler, e trouxe uma perspectiva mais aprofundada do entendimento do que é comida, preconceito alimentar e hierarquização do gosto. Com uma escrita fluida e didática, Lourence amarra diferentes temas em poucas linhas. Cheguei, inclusive, a recomendar este texto no meu Instagram umas três vezes. Caso você ainda não tenha lido, sugiro que leia antes de seguir a leitura desta edição.
O texto de Lourence – e sua interpretação do mundo – é fruto de uma leitura interdisciplinar, construída a partir de "teóricos pretos, de epistemologia preta", e crítica aos cânones, para onde ela olha com sobriedade. Seu didatismo está também (é claro) nos cursos livres que ministra on-line, e as relações que faz são apresentadas em frases objetivas, simples e eloquentes. Como esta: "A cozinha de santo é uma lente possível para a gente pensar o mundo".
Recuperando históricos de conversa, o trabalho de Lourence havia sido recomendado por outra amiga, Bia Nunes de Souza, a maior curadora de conteúdo gastronômico que conheço. Toda semana pinga no meu zap algum link imperdível. Obrigada, Ana e Bia!
Vamos à entrevista, então.
PRÓLOGO
— Eu queria tirar uma dúvida sobre seu nome antes de começar. Se fala Lurrance ou Lourênce?
— Deveria ser Lurrance. Minha mãe leu num livro, ela não se lembra mais qual, mas ela fala Lóurence.
— Particularmente, eu gostei mais.
— (risadas)
Lourence é historiadora, gastrônoma e doutora em Nutrição, Alimentação e Saúde pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Seu negócio é fazer conhecimento circular e o Onje Cozinha é resultado de parte de sua pesquisa para a tese, intitulada Onje: saberes e práticas da cozinha de santo (no prelo, sem data de publicação definida), defendida em 2019. A pandemia acelerou a adaptação de seu trabalho para o ambiente virtual, e ela realizou dois cursos – Introdução às Raízes da Cozinha Brasileira e Encruzilhadas Atlânticas: margeando sabores Bantu, Akan e Yorubá, este com Karina Ramos e Gabriella Moratelli – antes de lançar a Jornada Onje: Imersões na Cozinha de Santo, encontros que estão sendo realizados neste mês de agosto. Seu recorte é a cozinha de santo da nação Ketu, e a escolha pela palavra onje (pronuncia-se com a tônica na última sílaba: onjê) é porque significa "alimento" na língua iorubá.
"Estou revisitando a tese com novas bagagens de leitura. Eu defendo que a cozinha de santo é uma lente possível para a gente pensar o mundo", define. A cada encontro, Lourence apresenta um elemento e o relaciona com um orixá. "Por exemplo, na dimensão desse conjunto mítico-filosófico, Ogum é o ferreiro, então ele seria o patrono da agricultura, aí falo de Ogum e das ferramentas. No encontro sobre Exu, o tema é mercado, mas da perspectiva mercado-ojá, que fala de troca e não de acúmulo, e da relação e da sociabilidade construídas nos mercados", exemplifica.
Conversei por cerca de uma hora e meia com Lourence na tarde de 5 de agosto, por telefone, e transcrevo aqui os principais trechos, editados, para melhor entendimento.
A construção do entendimento de comida do brasileiro é eurocêntrica. Como poderíamos corrigir isso?
Não acredito em uma transformação a curto prazo. Toda a nossa bibliografia de sociologia e de historiografia da alimentação é sustentada em Câmara Cascudo, cuja base são os relatos de viajantes, e conversa muito com [a obra de] Gilberto Freyre. Quando se fala em tripé [da alimentação no Brasil Colonial], imaginamos que as três bases estruturais terão um mesmo peso e importância, mas não é o que aparece nesses relatos. A gente tem o Carlos Alberto Dória como uma das grandes referências bibliográficas, e ele reitera que não se pode falar da contribuição dos escravizados porque, na condição de escravos, essas pessoas não tinham capacidade criativa. Mas a verdade é que a nossa capacidade criativa é tão complexa e potente que nós conseguimos criar e inovar dentro de escassez e privação.
Eu sempre faço provocações. Falo que angu veio antes da polenta, que os cozidos não são portugueses, são de África. Mesmo dentro das fazendas, quem estava cultivando plantas rasteiras, matos de comer, chuchu, abóbora, quiabo... quem cultivava legumes para engrossar a parca alimentação recebida eram as pessoas escravizadas. A incorporação de legumes na alimentação era um costume de pessoas escravizadas e não dos portugueses, como se costuma dizer do "cozido português". Remontar isso é um processo de quebra-cabeça e fazer isso sem estrutura [e apoio à pesquisa] é ainda mais difícil.
A oralidade é desacreditada pela estrutura eurocêntrica, mas a oralidade é movimento, é o que mantém nossos saberes vivos e dinâmicos. Assisti à defesa da tese ["Um pé na cozinha: Análise sócio-histórica do trabalho de cozinheiras negras no Brasil] de Taís de Sant'Anna Machado e estou ansiosa para ler. Ela recupera a figura da cozinheira negra do período da escravatura até os dias atuais e fala: "estou fazendo um trabalho oral por não ter estrutura para colocar no papel". É urgente que a gente coloque essa dimensão de sabedoria oral no papel, porque se a branquitude as colocar, ela apaga, ela assimila nosso saber e o coloca como dela.
Pensando nos cânones da História e da Sociologia da Alimentação, que autores você adicionaria aos que já estão estabelecidos?
Eu venho me aproximando novamente da História, tanto em contato com historiadores que revisitam os fatos – e aí a alimentação aparece rapidinho –, como o professor Flávio dos Santos Gomes, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e cruzando também teoria preta, com Grada Kilomba, Lélia Gonzalez, Patricia Hill Collins. Vou revendo o que está posto. Não é jogar Gilberto Freyre nem Câmara Cascudo no lixo, pois tem muita coisa boa pra trabalhar. Mas precisamos ler criticamente. Temos a prática de consumir bibliografia como verdade, mas podemos trabalhar com a linha da possibilidade.
Vou trazer autores que não são da alimentação, mas que ajudam a trabalhar o cânone de forma atualizada. Tem um trabalho sobre cozinha de santo que se chama "O banquete sagrado: notas sobre os "de comer" em terreiros de Candomblé", de Vilson Caetano de Sousa Junior. Fora isso, citaria Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Antonio Nego Bispo, que tem uma escrita muito didática, muito fácil de ler. E Grada Kilomba, porque ela traz as ferramentas que fazem com que a gente entenda porque há este cânone embranquecido, e porque a literatura teórica preta não está ali no lugar da ferramenta e de método da teoria.
A questão toda [de autores negros não estarem nos cânones] não tem a ver apenas com a oralidade. Lélia Gonzalez e Beatriz Nascimento produzem [academicamente] desde 1970, mas a estrutura institucionalizada é embranquecida e não abre mão de seus privilégios. Grada Kilomba mostra um quadro que é sintomático: tudo o que produzimos não é associado [pela academia] à ciência, à neutralidade e à racionalidade. É uma escrita subjetiva, escrita nas margens, é uma escrita parcial, sim. E não é menos ciência por isso. Não é considerado ciência porque não estamos olhando para o outro, estamos olhando para nós mesmos e criando uma nova narrativa para a gente, que contrapõe tudo o que disseram sobre nós.
[a propósito: ouça o último episódio do podcast Vidas Negras, que traz uma entrevista com o historiador Flávio dos Santos Gomes]
Em outro trecho do seu texto ["Os saberes em torno da agricultura brasileira são heranças das tecnologias africanas e ameríndias"], você mostra que a reprodução social da classe dominante, desde os tempos de colônia, só era possível por causa do trabalho forçado de pessoas cujo conhecimento era desvalorizado, mas imprescindível para o colonizador. Você poderia falar mais sobre isto?
Desvalorizar o trabalho das pessoas negras e ameríndias e contrapor trabalho intelectual e braçal é um projeto, porque mantém na marginalidade os saberes de quem estava no braçal. Para nós, não há essa separação. Para fazer um trabalho braçal, você precisa saber como funciona, seja na terra, seja no processamento de alimentos, envolve química e física. Essas pessoas [negras e ameríndias] estavam desenvolvendo as duas coisas, o trabalho intelectual e a aplicação dele.
Quando defendo o que chamo de afrobrasilidades – as tecnologias de resistência das populações escravizadas, como elas desenvolvem e aplicam tecnologias no campo da alimentação – tem quatro pontos possíveis: 1) a cozinha quilombola, que é coletiva, mantém a proximidade com a terra, o que chamam hoje de farm to table; 2) os quintais e todo o domínio técnico do que se pode comer e como cozinhar estes matos de comer. É a sabedoria de colocar diferentes gêneros agrícolas em um espaço pequeno sem que eles concorram entre si.
3) Há uma sapiência em confluência [dos povos africanos escravizados] com os povos originários, como na aproximação das plantas autóctones [do Brasil] com plantas africanas, na arte do mercar que é troca e não acúmulo, na geração de redes de sociabilidade e de solidariedade, a dinâmica do movimento, da troca, de rede, de circularidade e na dimensão da religiosidade. 4) A comida de santo também é uma tecnologia: por meio do alimento você tem uma produção de vínculo e a atualização e renovação desse mito, uma alimentação da conexão espiritual.
Resgatar essa confluência entre trabalho braçal, ofício, serviço, e o trabalho intelectual, mental e colocar isso no lugar da potência e da sapiência é uma missão urgente.
A gente sempre foi colocado pela literatura canônica como quem faz, mas pra saber fazer, precisa ter conhecimento de como fazer, como continuar fazendo e como transmitir esse conhecimento.
Na gastronomia, [os conhecimentos, ingredientes e técnicas culinárias das populações negras e ameríndias] sempre ocupamos o espaço alegórico. Mas a gastronomia como campo de conhecimento ainda está nascendo. Estamos começando a organizar simpósios sérios; antes congresso de gastronomia era evento com aula-show de chef. Ter o curso de bacharelado em gastronomia dentro das instituições públicas deu uma forçada nesse movimento [de construção do campo de conhecimento], e vejo que os estudantes do bacharelado empurram muito os professores. Acredito que daqui uns anos a gente vá ter uma base de ensino mais sólida e isso vai pressionar as faculdades particulares [para acompanhar o movimento]. Só vai mudar quando tivermos um currículo mínimo para gastronomia. Hoje, qual a base para se aprender gastronomia? Nem existe gastronomia como campo dentro da Capes. Cada faculdade define o seu currículo e pronto. Então é preciso disputar espaço em como o conhecimento é distribuído.
Eu não sei vocês, mas eu quero muito ler e ouvir mais a Lourence. Merci, chérie!
Siga a Lourence Alves no Medium e Instagram e também o perfil do Projeto Onje.
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