#2 | fragmentos de arroz
sobre indignação virtual, políticas públicas de segurança alimentar e honestidade argumentativa
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O APRESSADO COME CRU
o que poderia ter sido, mas não foi
Para o texto principal desta segunda edição, eu havia começado um ensaio pessoal sobre minha relação com a alta cozinha. Nele, queria explorar como a pandemia me fez perceber que a minha sensação de pertencimento a essa área é, na verdade, frágil.
Sem poder comer fora – seja por decretos municipais ou por não sentir segurança – e com a noção de que o orçamento pode apertar a qualquer momento, não há como me manter verdadeiramente atualizada sobre que gosto têm os novos estabelecimentos, nem provar o menu degustação sazonal de um restaurante renomado etc etc. Isso me chateou à beça no início da pandemia, lá por abril (sou precoce), e tive uma crise de identidade absurda.
Mais de um ano depois, finalmente absorvi o impacto e comecei a me perguntar: por que ainda tenho interesse em um nicho que passa a atender cada vez menos gente, em um país em que a discussão mais recente é sobre a venda de fragmentos de arroz?
[aqui eu faço uma pausa para reconhecer que eu fui totalmente levada pela LOUCURA das redes sociais e repeti esta informação antes de conferi-la – trato dela na segunda parte desta newsletter]
O texto andou pouco, mas o suficiente para eu perceber que ainda estava muito próxima do incômodo para conseguir olhá-lo com frieza e escrever sobre sem me justificar longamente a cada dois parágrafos.
E, bem, além de tudo isso, eu estava enganada, porque a alta cozinha não está atendendo menos gente. Empiricamente, é preciso frisar, não é o que tenho observado e ouvido.
Entre junho e julho, encontrei dois amigos que trabalham em restaurantes contemporâneos. Cada um deles para um chef de renome nacional e internacional, que eu devo ter entrevistado uma dúzia de vezes cada (se não mais) desde 2013, quando comecei como repórter de gastronomia em Curitiba. Comer em seus restaurantes, no entanto, err… devo ter ido no máximo três vezes.
O que meus amigos me relataram é que o trabalho segue intenso, mudando apenas a quantidade de clientes que os decretos municipais permitem no salão, que variaram entre nenhum e parte da lotação nestes quase 16 meses de pandemia.
Os curiosos, como eu, sumiram. A classe média remediada, a qual integro, não perdeu qualidade de vida, eu sei. Apenas precisou zerar as estripulias gastronômicas às quais se permite de tempos em tempos para celebrar sentindo o gostinho do luxo nas papilas gustativas.
O verdadeiro público da alta cozinha segue firme e forte, fazendo filas e lotando reservas. Clientes que têm como rotina jantar fine dining duas, três vezes por semana, não se privaram de nada nos últimos anos. Seguem comendo foie gras, aproveitando as trufas frescas do verão italiano e pedindo garrafas (sim, no plural) de vinhos que custam quatro dígitos. Sem dor no bolso. O aumento no valor destes ingredientes não inviabiliza seu consumo, não aumenta a fome nacional, nem mesmo derruba um setor de empregos. Diferentemente dos preços de arroz e feijão.
Abandonei, então, o rascunho. Seria muita desfaçatez de minha parte enviá-lo, uma vez que este foi um dos slides do curso Como Escrever Sobre Comida.
Até entender como vou lidar com os sentimentos conflitantes que tenho sentido, o início mal articulado de ensaio pessoal seguirá no congelador.
INTERLÚDIO
Entre uma pesquisa e outra sobre a variação de preço de ingredientes sempre caríssimos, encontrei essa grafia curiosa para foie gras e achei que valia compartilhá-la.
[agora sim o tema da newsletter]
A QUESTÃO DO ARROZ
resumo-pra-quem-tá-com-preguiça-de-ler: Eu concordo com o coro que se indigna com o preço do arroz, mas que o fragmento de arroz será uma realidade no prato do brasileiro… aí já fica mais difícil de afirmar. Sua presença no varejo não é representativa, seu valor comercial é menor e, para aumentar a oferta, a indústria teria que quebrar parte da produção de alto valor para vendê-la mais barato. Faz pouco sentido.
Dois tweets publicados na última semana me convenceram de que abandonar a tentativa de ensaio pessoal era o melhor a fazer. Um dos tweets foi o vídeo da senhora que chora ao dar uma entrevista a um telejornal durante suas compras em um supermercado. O outro foi a foto de sacos de cinco quilos de fragmentos de arroz:
Foi compartilhada por tantos perfis e, no entanto, ninguém publicou uma informação sequer sobre a cidade, o supermercado, ou a data em que a foto foi tirada.
Minha amiga Júlia Jacob de Oliveira, analista de dados, chamou a atenção para outro ponto: se este produto de valor menor for mesmo uma opção para a alimentação de populações vulneráveis, poderia estar em redes de supermercados populares e como opção, por exemplo, no Armazém da Família, política pública no Paraná em que os produtos são vendidos por um valor em média 30% menor aos cadastrados – no entanto, não encontramos os fragmentos de arroz listados como alternativa na lista da segunda semana de julho. Dei uma volta no supermercado Matriz próximo à minha casa e não vi um pacote sequer. Em pesquisas para compra on-line, encontrei à venda apenas na rede Angeloni a marca Romãozinho por R$ 3,65 o pacote de 1 kg.
[se você viu fragmentos de arroz na gôndola do supermercado que você frequenta, me responda contando o nome da rede e a cidade, por favor?]
Segundo a Rampinelli Alimentos, a foto é de uma unidade integrante ao GPA (grupo ao qual pertencem as redes Pão de Açúcar, Extra e Compre Bem), para quem a Rampinelli vendeu mais da metade da sua produção de fragmentos de arroz: 64,5% em 2020 e 72% da produção de 2021 até julho.
O Grupo Pão de Açúcar me respondeu com uma nota:
“O Grupo informa que não é possível identificar se a imagem foi feita em uma de suas redes e, também, que o produto em questão não é mais comprado pela empresa, mas eventualmente pode haver pequenas quantidades do item em alguma loja.”
FRAGMENTO NÃO SUBSTITUI O INTEIRO
O fragmento de arroz é um subproduto da produção de arroz, branco ou parboilizado. É composto de grãos quebrados e de quirera, que são separados no último estágio de beneficiamento de arroz – quando só há a parte comestível e alimentícia do cereal sendo classificada para a embalagem. Não é um produto apresentável como o arroz inteiro, por isso acaba saindo mais em conta. Comer um cereal moído ou triturado não deveria ser um escândalo; a polenta é um exemplo disso.
Mas o arroz quebrado virou símbolo de um empobrecimento da alimentação no governo Bolsonaro – não foram poucos os tweets afirmando que o fragmento de arroz passava a integrar as refeições dos brasileiros no lugar do tipo 1, e alguns sites e blogs reproduziram a afirmativa, sem verificá-la.
O valor do arroz inteiro é indiscutível – material e simbolicamente – e o governo merece todas as pedras que lhe atiramos, mas pera lá.
Pedi ajuda à Raquel Canuto, professora do departamento de Nutrição da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, para saber se eu estava perdendo algo de vista ao escrever este texto. “O valor nutricional do arroz quebrado não necessariamente diminui, mas o que causou essa indignação é a falta de acesso das pessoas a um alimento de consumo diário. Simboliza a falta de acesso ao básico”, me disse.
Dificilmente um produto como o arroz fragmentado causaria tamanha repercussão se os governos estivessem fazendo seu papel de manter os estoques públicos abastecidos visando à segurança alimentar da população. O volume de arroz armazenado pelos estoques reguladores vem numa decrescente desde 2012, mas foi a partir de 2015 que passou a minguar aceleradamente.
A falta de estoque estratégico fez com que o preço do arroz disparasse em 2020 e siga alto em 2021 porque o governo espera que o preço de um alimento básico seja regulado pela lei da oferta e demanda.
[espero não ter que explicar o motivo de esse raciocínio ser aviltante]
Júlia fez um bom resumo: não apenas a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) está enfraquecida, como a taxa de desemprego de 14,7% é a mais alta desde o início da série histórica, em 2012. O poder de compra corroído do brasileiro se deve também à inflação galopante (para trazer um termo da moda dos anos 1990) e ao reajuste de salários ser igual ou menor que a mesma, e a outros desmanches de garantias, como a reforma previdenciária e à política tributária de um país que faz com que as camadas com menor poder aquisitivo paguem mais impostos.
Há, ainda, a proteína animal, que volta a ser uma desconhecida ao brasileiro. “Tem coisas mais perversas [que a possível substituição do arroz por fragmento de arroz] acontecendo há muito tempo, como, por exemplo, o acesso à carne. A população pobre não come carne, pede ossos e gordura e cozinha com isso para dar sabor. Come-se o subproduto da carne todos os dias, como nuggets e salsicha, feitos de restos de animais, pele e osso triturados, porque não há acesso a um filé mignon, a uma picanha”, comentou Raquel.
Concordamos no ponto que, mesmo que seja subproduto, o fragmento de arroz ainda é um alimento, assim como o fubá e uma castanha quebrada também são. Fui ver, então, qual a importância do fragmento de arroz comercialmente e se, de fato, poderia chegar a substituir o arroz inteiro na alimentação do brasileiro.
FRAGMENTO NÃO É FARELO
Nas estatísticas disponibilizadas pela Associação Brasileira da Indústria do Arroz (Abiarroz), a exportação de fragmentos de arroz no primeiro semestre de 2021 foi semelhante à de mesmo período em 2020, girando em torno de 167 mil T, sendo os principais países compradores Senegal, Holanda, Gâmbia e Estados Unidos. A importação de fragmentos de arroz, no entanto, foi maior no primeiro semestre de 2021 que o mesmo período de 2020: 5,9 mil T versus 3,7 mil T, vindas do Paraguai e Uruguai em 2021 e do Paraguai, Uruguai e (muito pouco da) Alemanha em 2020.
Não há informações sobre a destinação desses fragmentos de arroz importados pelo Brasil, mas este volume não daria conta de substituir um produto na alimentação humana – o consumo interno brasileiro de arroz é da ordem de 11 milhões de toneladas ao ano. Para o agronegócio, então, estas milhares de toneladas são migalha se comparado ao volume e valor de outras commodities e do próprio arroz inteiro. Na Câmara Setorial do Arroz não encontrei dados de consumo interno de fragmentos de arroz.
O fragmento de arroz pode ser moído para virar farinha, ser usado como ingrediente da indústria alimentícia em papinhas, biscoitos, massas sem glúten; ser usado pela indústria de ração animal (geralmente no lugar do milho) ou por indústrias que podem se beneficiar de seu amido para iniciar ou acelerar fermentações, como a cervejeira. Uma cartilha da Embrapa de 2013 resume bem o uso dos três subprodutos do beneficiamento do arroz, o quebrado (fragmento), o farelo e a casca:
“O arroz quebrado, mais utilizado no País para a confecção de rações animais e a fabricação de cerveja, pode também ser usado para produzir uma variedade de produtos como pasta de arroz, vinagre, biscoitos, macarrão, farinha, amido, além de servir de substrato para a fermentação alcoólica para obtenção de etanol.
O farelo (que contém, em média, 20% de lipídios, 14% de proteínas, além de bons teores de vitaminas e fibras), no Brasil, é utilizado principalmente como componente de rações animais, mas pode também ter muitas aplicações, como na extração de óleo comestível e na produção de farinhas e concentrado proteico.
A casca não tem aplicação alimentar, embora tenha potencial de uso em áreas variadas.”
Geralmente comprado para ser preparado como alimento para cachorros, o fragmento de arroz é recomendado para este fim porque é mais barato que o arroz inteiro, claro, e porque o Regulamento Técnico do Arroz permite até dez gramas de matéria estranha em um quilo de fragmentos de arroz, enquanto que, para o arroz tipo 1, o peso máximo é de um grama de matéria estranha em um quilo.
A tabela nutricional de arroz cozido e do fragmento de arroz cru são similares. Não encontrei informações nutricionais do fragmento de arroz cozido para uma comparação mais assertiva, mas sabe-se que um cereal quebrado ou moído facilita a liberação de amido na hora do cozimento, e por isso se usa para preparos cremosos (como a polenta, que citei anteriormente) e para encorpar sopas (como quando usamos fubá para dar textura à um caldo).
“É algo bem tradicional no sul preparar sopas, cremes e minestras com esse arroz quebradinho”, explicou, por telefone, Juliana Rampinelli, sócia da Rampinelli Alimentos. A empresa tem escritório em Forquilhinha, município vizinho a Criciúma, no sul de Santa Catarina, e vende fardos de 30 quilos aos supermercados da região a um preço equivalente a R$ 2,56 por quilo para os fragmentos de arroz, enquanto o arroz branco tipo 1 sairia pelo equivalente a R$ 3,26 o quilo.
A marca produz arroz desde 2016, quando abriram uma fábrica em Eldorado do Sul (RS), e têm sete tipos no portfólio, além de venderem fragmentos de arroz, farinha de arroz e biscoitos de arroz. Juliana me passou o aumento da venda ano a ano – uma média de pouco mais de 5% ao ano entre 2016 e 2020 – e a participação de fragmento de arroz foi em média de 0,5% nas vendas da empresa desde 2016. “Não enxergamos um aumento da venda desse produto”, me disse Juliana por e-mail. Não parece mesmo.
Mesmo sabendo que toda polêmica da internet desaparece em poucos dias, tentei ainda verificar se a oferta de fragmentos de arroz havia aumentado em alguma região do país.
Escrevi à Associação Brasileira de Supermercados para perguntar se seria possível um levantamento de compra de fragmentos de arroz e de arroz inteiro desde 2017 ou 2018 (perder a vergonha de ser sem noção é um dos meus exercícios diários); eles negaram poder ajudar.
Como o arroz e feijão da mesa do brasileiro vêm da agricultura familiar, fui ver se o fragmento de arroz era um produto da Vitrine da Agricultura Familiar, da Secretaria de Agricultura Familiar e Cooperativismo (SAF). Há apenas uma marca cadastrada, enquanto de arroz (dos mais variados tipos) são 65 produtos.
Sendo impossível que uma produção de arroz não tenha grãos quebrados, ouso inferir que a preferência dos produtores de arroz é vender seu fragmento para a indústria alimentícia em vez do varejo. A SAF me indicou falar com a Câmara Setorial da Cadeia Produtiva do Arroz, mas não obtive retorno até o fechamento dessa edição, no final da tarde do dia 26 de julho. Nos documentos disponíveis no site da Câmara Setorial, há bastantes projetos de incentivo e disseminação do uso da farinha de arroz.
Escrevi para quatro marcas grandes de arroz para perguntar o que era feito com os fragmentos da produção – se eram vendidos para a indústria alimentícia, usados para produção de outros itens do portifólio da marca ou se eram empacotados para o varejo. A assessoria de imprensa da Camil informou que a marca não deseja falar sobre o tema. A assessoria de imprensa da Tio João retornou dizendo que a fabricante, Josapar, não registrou alteração nas vendas, sem fornecer detalhes sobre volume, percentual de grãos quebrados ou qual o destino dos mesmos. As demais marcas também não responderam até o fechamento.
É a conjuntura de políticas públicas esvaziadas, diminuição de renda e precarização da alimentação contribui para que o arroz suma do prato. Inteiro ou quebrado.
[passo uma semana escrevendo, mais uns dias de revisão da newsletter e aí vejo que o Estadão postou a checagem do assunto um dia antes deste envio, olha só]
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