[entrevista: Taís de Sant'Anna Machado] "a figura do chef de cozinha se constrói em contraponto à cozinheira doméstica negra"
socióloga analisa três séculos de trabalho de mulheres negras em alimentação, do trabalho forçado na escravidão à deslegitimação que sofrem nos restaurantes da atualidade
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Em 2010, a recomendação de que o livro "Caçadas de Pedrinho", de Monteiro Lobato, fosse retirado do Programa Nacional de Biblioteca Escolar (PNBE) foi entendida como uma possível censura por vários setores da sociedade – inclusive por uma professora da área de literaturas africanas de língua portuguesa. Eu me lembro de ficar desconfortável ao ler os trechos citados nas matérias e de ver as opiniões a favor de manter o livro de 1933 no PNBE "porque era assim que a maioria pensava naquela época". Esqueceram-se de considerar que essa maioria era a maioria de brancos, claro.
O que não estava em pauta na discussão pública na década de 2000 e início de 2010 era que Monteiro Lobato era declaradamente um eugenista, ou seja, que acreditava que havia pessoas melhores que as outras e que haveria uma hierarquia entre características genéticas, físicas e mentais para valorar o ser humano.
Em 1914, Lobato enviou uma carta inflamada a um jornal de grande circulação, em que dizia, dentre outras coisas, que o "caboclo" era "inadaptável para a civilização". A carta acabou sendo publicada na seção de artigos, e ele passou a escrever com mais frequência publicamente. O dito autor foi se dedicar à literatura infantil – abertamente racista e com um subtexto bastante colonial, para dizer o mínimo – quase uma década depois. Toda a sua obra parte de um mesmo ideário, fácil de perceber se você se esforça para analisá-la tomando distância da nostalgia e não se deixando levar pela qualidade técnica da escrita e da composição textual. Assim como cor, erudição não é sinônimo de virtude moral.
No início do século 20, eugenia, higienismo e sanitarismo andavam lado a lado e modulavam o debate público à época. Alguns avanços da medicina, como a vacina, se misturavam no noticiário junto de eventos como "Concurso do Bebê Eugênico". Apesar de escancarado neste concurso de beleza infantil, o movimento pró-eugenia teve e tem várias faces. Nem sempre suas ações e discursos são facilmente reconhecíveis. Para compreender a presença dos discursos eugênicos no debate público, recomendo ouvir a primeira temporada do podcast Pelo Avesso, que trata precisamente do surgimento do movimento eugênico até o seu disfarce – e nunca a erradicação – dessa ideologia supremacista branca no Brasil.
Pensando na complexidade e nas disputas que compõem o campo político desde que o ser humano se organizou em sociedade, a justificativa nos dias atuais a favor da obra de Lobato deixa de ser ingênua (como já acreditei que seria) para ser conivente. A obra, claro, poderia ser editada com comentários críticos para contextualizar os estudantes e servir como algo transdisciplinar, envolvendo História e Literatura – seria esse um esforço menor que editar novas obras, de novos autores, mais plurais e que reflitam os tempos atuais?
Não tenho cacife nem formação para analisar o impacto que a retirada dos livros de Lobato causaria na reformulação de cartilhas e de conteúdo escolar a nível federal, mas consigo ver o efeito que uma de suas personagens teve na formação do estereótipo de cozinheira negra doméstica.
É ciente de que essa mentalidade eugenista foi preponderante (e na maior parte do tempo, discreta) no debate público do século 20 – na produção cultural, na manutenção de privilégios econômicos, e na mentalidade da elite colonial brasileira, que sempre teve muito espaço e eco na mídia tradicional – que eu espero que você leia a entrevista da fogo baixo neste mês.
Anotei pela primeira vez o nome Taís de Sant'Anna Machado em agosto do ano passado, enquanto entrevistava Lourence Alves. Ouvi de Lourence que a tese de Taís era um marco na academia, e que Taís partia, assim como ela e outros pesquisadores, de uma epistemologia preta, que articula diferentes disciplinas para investigar questões quase sempre tratadas a partir de uma ótica distante, em que o "étnico" em questão é apenas o objeto, e não sujeito produtor de conhecimento.
Taís é doutora em Sociologia pela Universidade de Brasília e, em sua tese, intitulada "Um pé na cozinha: uma análise sócio-histórica do trabalho de cozinheiras negras no Brasil", resgata o trabalho de mulheres negras na cozinha do século 18 ao 21, da cozinheira Esperança Garcia até chefs de cozinha e cozinheiras profissionais nos dias de hoje – estas, anonimizadas para protegê-las de retaliações. Taís apresenta as condições de trabalho nesse espaço e as diferentes maneiras que essas mulheres encontraram de resistir e de atuar mesmo sendo cotidianamente desrespeitadas ao longo destes mais de três séculos.
O trabalho acadêmico será editado no formato de livro e seu conteúdo, adaptado para uma linguagem menos acadêmica. Não que o texto de Taís precise: a leitura flui muito bem mesmo para o leitor leigo. "A linguagem foi um cuidado que tomei ao escrever a tese, porque queria que muita gente pudesse acessar esse trabalho. É uma história invisibilizada que toca a maior parte dos brasileiros", disse. Parte das 305 folhas da tese estarão sintetizadas em menos espaço, e a previsão é que o livro seja lançado no segundo semestre de 2022.
Taís conversou comigo por telefone por cerca de uma hora e meia na semana passada. Abaixo estão os principais trechos da nossa conversa, editados e organizados para melhor entendimento:
Você abre sua tese com um capítulo em que narra a mudança de perspectiva que você teve quando as entrevistadas lhe mostraram que preferiam enfatizar suas conquistas a publicizar o preconceito que sofreram. Pensando na cozinha autoral e na proposta que essas mulheres apresentam ao mundo, que histórias as chefs entrevistadas contam através de sua gastronomia e pratos? Do que elas têm orgulho de criar?
Que interessante, ninguém tinha me feito essa pergunta até agora. Isso está pouco na tese. O meu trabalho não é um compêndio de receitas, como muita gente acha. Seria grandioso ter o rastreio dessas receitas sem o rótulo genérico de "africano" ou "étnico", como rotulam tudo o que não é francês e italiano. Mas esse não era o foco da tese, o foco era o trabalho na cozinha.
Enquanto entrevistadora, eu vejo diversas contribuições e caminhos. Elas são impelidas em estar em uma camisa-de-força do que podem cozinhar, do que querem que elas façam, então são muito empurradas para a cozinha africana, brasileira, etc.
Mas enquanto trabalho autoral, elas cozinham muitas coisas diferentes entre elas. Tem uma que é rainha da técnica francesa. Tem outra que "deus-que-me-livre" fazer comida étnica, ela queria ser contemporânea e fazer fusion cuisine, a partir do que dava na telha, do que ela conhecia a partir das viagens dela, como um chef branco clássico quando volta da Tailândia e incorporando ingredientes na sua cozinha. Quem cozinha com influência africana tinha referência de muitas regiões e países do continente. Na cozinha brasileira, tem uma que trabalha com PANC.
Muitas delas têm de sair de seus repertórios autorais, fazem o que há de encomenda. Elas diziam: "eu sei que é isso que esperam de mim [cozinha africana e brasileira], mas se eu não fizer, quem vai fazer? Um branco?". Elas são pessoas com muita experiência prática, circulam por muitos repertórios possíveis.
Como as chefs e cozinheiras negras avaliam e se relacionam com esses estereótipos como a quituteira ou ainda o de uma cozinheira que domina apenas a comida étnica, que serve apenas para executar o cardápio de outra pessoa?
Essa é uma das grandes frustrações delas. Eu discuto muito no terceiro capítulo que, enquanto cozinheiras profissionais ou chefs de cozinha elas estão em um não-lugar. É complexo entender o aprisionamento da mulher negra na cozinha, mas esse lugar não é para ser chef, para ser primeiro ou segundo cozinheiro. É para ser auxiliar ou lavar prato. Elas estão ocupando um lugar que não deveriam ocupar. Analisando a história da gastronomia a partir de perspectiva racial, de classe e gênero, a figura do chef de cozinha se constrói em contraponto a cozinheira doméstica, ele tem que ser tudo o que ela não é: se você a enxerga como uma trabalhadora doméstica, você não vai enxergar ela como ela é.
A Bianca Briguglio me cedeu a entrevista que ela fez com a Benê Ricardo [página 151], que faleceu em 2017. Benê foi a primeira chef formada do Brasil, e nessa entrevista ela fala sobre todo tipo de deslegitimação e boicote que sofreu em cozinhas profissionais. Teve até subordinados colocando vidro num molho de tomate que ela ia servir. Uma tentativa de criminalizá-la. É todo tipo de artimanha que quer dizer "seu lugar não é aqui. Você precisa voltar para outra função".
As violências são várias: fornecedores não te reconhecem, os clientes não acreditam que você é a chef. Isso mina seu cotidiano. Ninguém as vê como autoridade. Estão em lugares que não deveriam estar. Elas falam: "porque veem a Fulana como chef e me veem como tia Anástacia?", sendo a Fulana uma chef branca...
Estereótipos como o da tia Anastácia, que tem um repertório só de executar e não de pensar, são construídos enquanto projeto de nação, que coloca mulheres negras em lugares menores e subalternos de forma violenta, que faz com que o país funcione.
Não é por acaso, é intencional: mulheres negras aprisionadas nesses lugares mantêm uma mão de obra barata para o trabalho doméstico. É um projeto de supremacia branca, de violência. Isso está no cerne da definição do chef de cozinha. É um papel que não foi feito para elas. E elas estão brigando para ocupar.
Você afirma que, mesmo sem parecerem combativas e militantes, as mulheres negras usaram a cozinha como espaço de resistência e de ação, algo que o senso comum e até mesmo o meio acadêmico pouco considera. Você poderia exemplificar de que forma as chefs e cozinheiras negras têm articulado agência e resistência na cozinha ao longo dos séculos?
A cozinha é um espaço extremamente racista. A simples presença dessas mulheres, a insistência em ocupar esse espaço enquanto chefs e cozinheiras, já é um lugar de agência e resistência. O racismo, sexismo e classismo operam de diferentes jeitos e elas atuam a partir das brechas que têm: quem teve acesso a cursos internacionais ou trabalhou em restaurantes dentro de um circuito mais legítimo, consegue peitar determinadas estruturas, trazer outros profissionais negros para esses espaços. Quem não teve esse acesso por causa de um racismo que afeta sua renda e as oportunidades, tem que ceder em muitas coisas.
Muitas coisas tiveram de ficar fora da minha tese, coisas que escutei e que não pude colocar porque colocava em risco a trajetória dessas profissionais. Se você [enquanto cozinheira ou chef] fala sobre essas violências, você sofre as sanções disso, passa a ser vista como encrenqueira.
Mas há também uma formação de redes entre elas, uma abertura para algum nível de discussão sobre racismo antinegritude que elas tentam mobilizar. Elas compartilham oportunidades entre si, montam projetos, brigam por determinados repertórios culinários e pela autoria desses repertórios usurpados por chefs brancos, fortalecem quilombolas e comunidades indígenas para que eles sejam os donos desses repertórios.
A gastronomia é um campo muito predatório do conhecimento de povos tradicionais, quilombolas, indígenas, populações de terreiro.
É importante para mim pontuar que existem outras formas de resistência, porque pessoas negras precisam acessá-las, porque as sanções são muito graves [para quem se contrapõe publicamente como militante, por exemplo]. É algo que pode tirar oportunidades de trabalho, como em todo o mercado de trabalho. Isso acontece em um campo [a cozinha profissional] que é feito para homens brancos e no qual a política de reconhecimento é feita para reconhecê-los. A gente sabe que alguns chefs famosos não contratam mulheres e falam isso com pouco pudor. Quando você é mulher e ainda é vista como encrenqueira, não ter emprego pode significar não-acesso à subsistência. Então precisa-se de resistências menos diretas e mais silenciosas. E por isso a tese bate muito nisso: é uma longa história e tradição de resistência, que começa com uma carta-petição da cozinheira Esperança Garcia, em 1770 [página 45].
O ângulo pelo qual você olha para o trabalho de mulheres negras na cozinha ainda é pouco explorado pela academia. Você mesma optou por esse ângulo depois de alguns anos de doutorado. O que você destacaria como pesquisas possíveis a partir do seu trabalho?
Minha tese é uma gota no oceano. Fiz um enfoque em apenas um grupo na cozinha, mas é importante pensar como é relevante ter um olhar crítico sobre a alimentação. As pessoas se perdem nessa afirmação de que alimentação é cultura, e não necessariamente cultura é uma coisa boa. Pode ser violenta, como a tese mostra.
Sempre se catalogam hábitos alimentares e receitas como se isso existisse separadamente da estrutura de poder, violência e expropriação econômica. As mulheres negras [que trabalharam ou trabalham como cozinheiras domésticas] sempre foram submetidas a condições impossíveis de sobrevivência na cozinha. Enquanto famílias brancas tinham banquetes suntuosos, isso implicava necessariamente que famílias de cozinheiras negras estivessem passando fome. O pagamento às vezes era o resto da comida.
Esse enfoque e olhar crítico servem para todas as outras [pesquisas sobre o trabalho na cozinha]. É uma proposta para olhar outras coisas: como a brancura é olhada como o modelo, como os brancos "dominam" repertórios de cozinha que não são deles e se arvoram de uma certa neutralidade, como se pudessem fazer tudo e entender tudo.
No meu trabalho, estou tonalizando gênero e raça. É importante pensar que uma chef de cozinha negra terá uma experiência diferente e não "só" pior. A conexão com o trabalho doméstico é pior. Para mulheres brancas, a cozinha é um lugar absurdo de violência também, mas é uma experiência completamente diferente. Temos poucos estudos pensando em gênero e brancura, sobre feminilidade branca. Há vários caminhos possíveis e para que esse olhar possa ser ampliado e discutido.
Seu trabalho traz muitos relatos orais e realidades que não estavam escritas, documentadas e validadas pela academia. Como foi a avaliação disso na banca e entre seus pares?
Eu não acho que meu trabalho seja irretocável. Enquanto um trabalho com caráter precursor, eu sei que deixei de ver certas perspectivas. Quem vem aí pode desenvolver olhares críticos, podemos pensar a história da cozinha de maneira crítica. Não sou historiadora e posso falhar [ao aplicar metodologias da História Oral, usadas em sua pesquisa], mas falar sobre uma História que foi intencionalmente apagada e invisibilizada significa ter que procurá-la em diferentes lugares e de outras maneiras. Vou atrás de feminismos e de perspectivas negras, brasileira e estadunidense. É uma análise social, e estou me valendo de registros diferentes e de todo tipo: obituário, cartas, biografias, diários, registro de arquivo, filmes.
É preciso entender que, pelo caráter do que estou estudando, preciso considerar diferentes fontes, e que o trabalho dessa perspectiva negra e que está na parte teórico-metodológica é a definição de um trabalho indisciplinado. O cânone teórico da Sociologia não dá conta do que vou falar. A História não daria conta também. Por isso preciso articular diferentes áreas para falar o que estou estudando. E vou fazendo esse amálgama.
Toda pesquisa está fadada a ser limitada, com certeza, mas na minha cabeça não tem outro jeito de fazer isso. Eu estou fazendo um caminho metodológico conforme eu ando. Não cheguei a ter crítica disso na banca, mas eu não estava preocupada em atender um rigor disciplinar de História ou Sociologia, mas tratar a história das mulheres negras com respeito e da maneira que elas queriam contar. Eu não dou voz a ninguém, eu evoco. Minha intenção é servir de eco para histórias que estavam silenciadas e que essas histórias estejam no mundo com acesso facilitado.
No pós-abolição da escravatura, o espaço público, estar na rua e a comida de rua eram vistos como de domínio negro. Então chegaram os restaurantes e hotéis de inspiração na hospitalidade europeia e tomaram as vias públicas. O que esse deslocamento e marginalização causou no trabalho das cozinheiras negras e na alimentação da população?
O processo pós-abolição já é difícil porque eles saem sem nenhum tipo de reparação. O projeto era extinguir e dizimar. Você tem uma série de tentativas de branquear a população, uma série de leis de terras que impedem o acesso à terra, há um impedimento de acessar educação, tem política de criminalização do trabalho de cozinheiras negras nas ruas. Impedir acesso a determinados espaços de produção de renda é parte desse projeto: então o país civilizado europeu branco [como o Brasil se imaginava] precisa tornar a condição de vida da população negra, que era desgraçada, em algo pior.
Ao mesmo tempo, as cidades dependem do trabalho negro. Tirar as cozinheiras negras da rua não vai funcionar muito bem, vai precarizar mais algo que já era precário. O abastecimento continua dependendo da circulação de alimentos na cidade, na feira e na alimentação de rua, que sempre foi comum no Brasil. Sempre vai ter uma mulher negra com uma banquinha. Elas são retiradas de alguns espaços da cidade, às vezes retiradas à força, de centros que estavam se urbanizando e europeizado, mas vão trabalhar em outros lugares e em condições precárias, mas nunca saem da rua. A rua continua sendo um território negro a despeito de toda a criminalização desse trabalho. Tem uma dissertação que cito na minha tese, da Bruna Portella de Novaes, "Embranquecer a cidade negra: gestão do trabalho de rua em Salvador no início do século XX", que é muito bom para pensar nisso, especialmente em Salvador.
O que você poderia apresentar sobre as diferenças de oportunidade entre campo e cidade para as cozinheiras negras no período pós-abolição?
A cidade é a possibilidade de acessar outros trabalhos ou outros patrões. As cozinheiras são astutas, conseguem enxergar como funciona a estrutura acima delas e encontram brechas para ocupar determinados espaços. A ideia de que o negro é um trabalhador subserviente é uma invenção dos brancos. Elas estavam procurando outros trabalhos, estão sempre tentando ter uma mínima condição de trabalho – seja uma remuneração melhor, um tratamento melhor, poder levar os filhos… o que pode parecer pequeno de mudança no cotidiano às vezes era muita coisa para elas.
No pós-abolição, muitas mulheres ficaram presas às famílias que tinham escravizado suas famílias, e as famílias consideravam que elas deviam algo a eles. A dona Risoleta vai trabalhar com a filha do homem que escravizou o pai dela [página 107]. Ela, com 8 anos, sendo ensinada a trabalhar. No campo, ela tinha menos possibilidade de circular e ter melhores condições de vida, então ela vai para a cidade. Na cidade ela trabalha também para uma família, e aí ela nota que pode trabalhar com uma estrutura de hospitalidade pública que estava nascendo em São Paulo.
Havia os grandes hotéis, com os chefs de cozinha, e também as pensões, que tinham pequenos restaurantes e que também serviam a famílias abastadas. Elas estão sempre circulando. Há a migração forçada do tráfico e depois uma migração obrigada para conseguir melhores condições de vida. Você tem muita mudança para condições de trabalho do campo para a cidade: o êxodo rural acontece porque precisavam e não porque queriam. A cidade era um espaço para procurar mais oportunidades, como em São Paulo e Rio de Janeiro. Você circula e procura novas condições, às vezes eram coisas como o tratamento, ou não precisar dormir no trabalho.
E nas cidades naquela época, a cozinha do espaço público era um lugar de mais "autonomia e liberdade" (entre muitas aspas) do que o trabalho em uma cozinha privada?
Não quero fazer comentários generalistas. Muda de caso para caso. Entendendo as condições de trabalho na cozinha naquele momento, era um ambiente insalubre, um trabalho considerado humilhante. Havia violência física e sexual, era muito comum que elas fossem continuamente estupradas. Havia torturas de todo tipo, precisavam dormir no chão da cozinha. Era a pior condição dentro. Tem um relato em que uma mulher diz que a cozinha era onde ela colocava a escravizada de que não gostava. A parte 1 da tese se chama "Cozinha não era lugar de gente", porque se entendia que a cozinha era onde acontecia tudo de sujo.
Ao sair da cozinha doméstica para a cozinha no espaço público, você poderia ficar com seus filhos, você poderia ter um companheiro, visitar sua família. Financeiramente, implicaria ter um tipo de renda melhor, além de uma vida menos violenta e humilhante. Quando falo para não generalizar, para não entender a rua como espaço de liberdade e de tranquilidade total, é porque a rua também era espaço de violência física e sexual. As mulheres que andavam na rua eram mal vistas. A rotina de trabalho era muito extensa também.
O trabalho na cozinha é extremamente exaustivo em qualquer época. Às vezes, trabalhando na rua, você consegue ter um espaço para deixar suas coisas, mas às vezes você é itinerante e tem que andar quilômetros com comida e muita coisa apoiada na cabeça. Mas só de não estar sob o jugo de alguém, de ser humilhada, de sofrer violências físicas e de correr o risco de não receber a remuneração combinada já era um pouco menos pior.
Em "Diário de Bitita", a Carolina Maria de Jesus mostra que tinha vontade de fruir de sua mocidade, mas ela não tinha tempo. Era uma grande conquista para as mulheres negras ir ao baile. A dona Risoleta falava que chegava a passar seis meses sem ver a rua. São muitas camadas, condições de poder ser gente, viver minimamente a vida.
O que está colocado nas memórias do início do século 20, dos bailes que as mulheres frequentavam – isso não era realidade para as mulheres negras, que estavam confinadas e aprisionadas numa carga extenuante de trabalho. É um trabalho que é essencial para manter um cotidiano de classe média alta. E isso significa privar pessoas de serem pessoas.
Uma mulher negra em um trabalho extenuante e precário é a condição para manter a vida dessas pessoas brancas de classe média. Com a pandemia, é ainda pior: há um aprofundamento de coisas que pareciam presas no passado e que agora vão retornar com toda força. O projeto de não garantir direitos básicos é um projeto para tornar isso realidade de novo. Essa condução da pandemia da maneira como aconteceu é um genocídio de população negra e indígena, de precarização da vida e de aumento da desigualdade, de fazer as pessoas empobrecerem e assumirem essas funções de novo, porque sempre há demanda para o trabalho doméstico.
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