#7 | o preço do café especial e o valor do barista
da força de trabalho de base, o barista é o que melhor simboliza o acúmulo e desvio de função dos profissionais de hospitalidade
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Enquanto escrevo esta primeira frase, o pacote de 250 gramas de café que costumo comprar no supermercado está custando aproximadamente R$ 15. Há cerca de dois ou três anos, era metade. Não é um café caro: sua embalagem não ostenta um selo de certificação orgânica ou fair trade; é apenas um arábica de uma gigante do mercado, cujo rótulo leva o nome de uma conhecida região cafeeira do Brasil. Entre agosto de 2020 e 2021, o preço do café de gôndola teve um aumento de 37%, segundo dados da Associação Brasileira de Supermercados e, ainda assim, é quase três vezes menos que o do café especial – o tipo de bebida que eu gostaria de ingerir todos os dias.
Tomar café fora de casa foi a coisa da qual mais senti falta durante o isolamento social. Moro em Curitiba há dez anos, e não saberia dizer quantas vezes escrevi ou li o epíteto "a Seattle brasileira" para fazer referência à qualidade e reconhecimento dos quais gozam as cafeterias e baristas da cidade. "Curitiba é esse lugar em que você está andando na rua e esbarra com um campeão nacional", diverte-se o gastrólogo Vitor Haubert, barista e sócio do Manana Cafés, cafeteria aberta no centro de Curitiba em novembro.
É assim mesmo, especialmente se você estiver na região da Matriz, área que reúne o centro e bairros adjacentes da capital paranaense, onde estão as principais cafeterias da cidade. Quase todas foram abertas em meados da década de 2010, quando Curitiba começou a empilhar prêmios e reconhecimentos – só no Campeonato Brasileiro de Barismo, baristas de Curitiba eram a maior parte dos competidores e, muitas vezes, do pódio também (relembre as edições mais recentes antes da pandemia: 2017, 2018, 2019).
Nesse curto período, não é exagero dizer que o café especial foi o produto gastronômico com maior crescimento de consumo e de valor agregado no Brasil. Esse entendimento do café como bebida especial é relativamente recente no país: foi no final dos anos 1990, quando éramos o maior produtor de café do mundo, mas não o melhor. Daqui, saía o maior volume de sacas do fruto commodity, enquanto a vizinha Colômbia vendia o premium.
[Relato brevemente essa mobilização e construção de um setor de cafés especiais brasileiro no intertítulo Lições do café, ao final desta reportagem.]
É impressionante o que o setor cafeeiro conseguiu fazer em trinta anos. Em 2020, a produção brasileira de café especial representou 15,6% do total de cafés colhidos em território nacional, e nos últimos anos, o valor do produto tem crescido, especialmente para exportação. Em 2021, 19% de todo o café exportado do Brasil se enquadrava no tipo especial, e a saca, unidade de medida que equivale a 60 quilos, foi vendida a uma média de US$ 207,53 para 122 países.
Cada quilo contido nesse percentual vale duas vezes mais que um de commodity, porque requer insumos mais caros, mais tempo dedicado, um olhar treinado e uma compreensão dos processos e princípios que podem transformar aquele fruto em uma bebida complexa.
Naturalmente, o volume processado por vez é menor – para que as mãos e o conhecimento humano consigam controlar os resultados. Em janeiro de 2022, uma saca de café especial brasileiro custa em média R$ 1.500, enquanto uma de café commodity, quase R$ 800.
— Esse acréscimo de valor se acumula em outros bolsos que não o do trabalhador – e o barista é um dos trabalhadores braçais. Seria possível falar da Lei de Terras, três séculos de escravidão, importação de mão de obra barata, grilagem de terra e demais dispositivos ou brechas institucionais que formaram e que mantém a cadeia de produção do café, mas escolhi falar da última ponta: o barista, a interface do café especial no cotidiano urbano. —
O café especial pode estar em alta, mas o barista, não. Sua carreira não é muito diferente das outras profissões de base da cozinha. Assim como o cozinheiro e o garçom, ele passa o expediente em pé, recebe um piso de R$ 1.400 – pouco mais que um salário mínimo – para seis dias de trabalho por semana e, mesmo que chegue a um cargo de coordenação, o prestígio será maior que o valor impresso no holerite.
"A conta não fecha nem para o barista, nem para a cafeteria", diz Ellen Krause, barista e instrutora certificada pela Specialty Coffee Association (SCA). Os baristas são os profissionais que melhor representam a precária base de um estabelecimento com atendimento ao público: precisam dar conta de uma série de atividades que extrapolam sua atividade-fim; sua formação técnica é operacional, mas o conhecimento que o fará se destacar será adquirido muitas vezes de forma autodidata; e é comum que um profissional trabalhe em pelo menos dois lugares diferentes ou que exerça duas carreiras distintas para conseguir pagar suas contas. O ritmo é intenso, e a ironia é que a cafeína para de fazer efeito depois de um tempo.
É desejável que ele tenha um nível de conhecimento técnico do cultivo à torra, e que esteja em aprimoramento contínuo; uma cobrança mais enfática do que a feita a um cozinheiro de linha, por exemplo. Mesmo que o barista não tenha exatamente uma progressão dentro da área, e sim um acúmulo de títulos, como mestre de torra, instrutor ou Q-Grader – às vezes tudo junto. São formações que custam entre R$ 1 mil e R$ 1.500 apenas o módulo inicial, muitas vezes realizado em algumas horas. O salário de um mês investido em um dia.
Olhando de perto, a maior parte dos profissionais bem estabelecidos hoje chegou até aqui se mantendo com mais de um emprego – designers, jornalistas e publicitários foram os tipos que mais conheci nesses quase dez anos de reportagem em gastronomia –, sem férias, e usando a renda de trabalhos freelancers para investir no sonho do café próprio. É uma profissão de entusiastas.
O barista é o profissional que mais absorve desvio de função, algo bastante naturalizado no setor de alimentação – entre anotar, preparar e servir o pedido; tirar a mesa, lavar a louça e cobrar, é possível que o barista ainda tenha que limpar o banheiro e a caixa de gordura, além de ser uma espécie de palestrante individual para cada cliente que senta no balcão. "O acúmulo de funções se deve ao tamanho das cafeterias. Na maior parte das vezes, não tem como contratar mais gente porque são negócios pequenos", explica Ellen.
Entre ser atendente e vendedor, o barista executa com precisão e agilidade processos lentos como uma extração de filtrado, enquanto fica de olho no salão para limpar uma mesa, aquece um pão de queijo e lava as xícaras. "Tem habilidades que a gente descobre na prática. Ter jogo de cintura, interpretar o desejo do cliente, ser artista pra fazer latte art…", enumera Ewerton Lemos Gomes, barista formado pelo SENAC e doutorando em Geografia. Há cinco anos, Ewerton mantém a página Tour CWB Coffee no Instagram junto da sócia Paula Hirano.
Para os baristas, pode-se perguntar o quanto ele estiver disposto a responder: qual a origem do café, quais as notas, por que determinado método traz mais ou menos corpo para a bebida, qual dos cafés do dia tem mais acidez, que tipo de colheita foi feita, como melhorar o resultado do seu café passado em casa, como aquele café foi torrado, qual moedor é o melhor para ter em casa… a lista é infinita, e a paciência de muitos deles, também.
"Deixamos os baristas que lidam melhor com público na máquina de espresso, no balcão, para conversar com os clientes, e deslocamos para os métodos filtrados o barista que tem boa técnica, mas que não se sai tão bem no atendimento", revela Ellen. A margem de erro ao tirar um espresso em uma máquina previamente regulada pelo barista sênior é menor; nos filtrados, cada pedido pede a mesma concentração e precisão, do zero. Uma alocação de recursos humanos para otimizar a experiência do cliente.
O barista é um controlador de variáveis: tempo, temperatura, granulometria, método de extração, peso, intensidade e quantidade de ataques. Para regular a máquina de espresso, ele precisa saber qual o perfil do café, moer em diferentes granulometrias, tirar um, dois, cinco, dez espressos com tempo diferentes, até encontrar a receita daquele lote. "Tem cafeterias que não permitem que o barista tire mais do que três espressos para regular a máquina. É uma ‘economia’ de café que não faz sentido se você está servindo uma bebida especial", comenta Vitor.
A formação de um barista é das mais interdisciplinares da gastronomia – não basta decorar as características do terroir e as notas encontradas na bebida, e sim entender o princípio das transformações pelas quais o fruto passa, o que ocorre, fisicamente falando, na extração do café, além de ter um rigor científico para estudar por conta própria.
"O que eu fiz para poder ampliar meu repertório foi comprar métodos e cafés diferentes para fazer meus próprios testes em casa", relembra Vitor. A empiria é o maior professor do barista, e também seu principal ativo. Quanto mais ele testa e aprende a partir dos testes, melhor ele extrai o café em diferentes métodos. "A formação é o balcão e o currículo é a xícara", resume Ellen que, em seus tempos de coordenadora, prestava atenção à organização do barista. "Você aprende que lavar a pitcher é a primeira coisa a fazer depois de soltar o pedido", relembra. Um pré-requisito para manter a bancada exígua sempre organizada.
Em um dos vários caderninhos que eu acumulei nesses anos como repórter, fiz um rascunho de infográfico da cadeia de valor do café especial enquanto conversava com Maria Mion, barista, educadora e instrutora certificada pela SCA. No calor de São Gonçalo do Sapucaí, no Sul de Minas Gerais, rabiscamos uma folha na varanda de uma casa do Capadocia Coffee em 2018. O infográfico era um fluxo com ícones e setas, em que os ícones representavam um estágio da matéria-prima e seu custo, e as setas, o percentual do valor agregado que o trabalho humano acrescentava ao café: plantar a muda, controlar as pragas, colheita manual, secagem, seleção, transporte, armazenamento, torra, cupping, empacotamento, distribuição, moagem, filtragem, serviço de salão ou balcão, limpeza da louça.
O esquema começava com uma muda da planta e terminava com uma xícara de café. Esse infográfico nunca saiu, infelizmente.
Mesmo sem o auxílio visual desse esquema, é fácil notar que o valor agregado ao café vem das mãos de trabalhadores e os lucros destinam-se a apenas alguns poucos bolsos. O trabalhador que faz a colheita seletiva à mão recebe por hora ou empreitada; o dono do cafezal, por saca; o torrefador, por peso; e o barista, por salário.
Muitos dos profissionais da cadeia nunca conseguirão pagar periodicamente pelo café especial que produzem.
Para o barista, que precisa beber café especial para poder fazer bem feito o seu trabalho, o valor da hora trabalhada vale um espresso – exatamente R$ 6,36 de acordo com os cálculos do Sindicato De Hoteis, Restaurantes, Bares E Similares De Curitiba – Sindhotéis. Quem trabalha como taxa em Curitiba, recebe entre R$ 10 e R$ 13 a hora. "É um valor que estamos tentando há anos aumentar. Fizemos um grupo de baristas na pandemia para combinarmos de não trabalhar para algumas cafeterias que pagavam abaixo. Mas não é algo que todos podem escolher, infelizmente", diz Vitor. No Manana, a hora do barista taxa custa R$ 15, valor considerado o mínimo por Vitor e Dora Suh, sua companheira e sócia.
Há cafeterias que pagam abaixo porque há relativa abundância de mão de obra no momento. A cada três meses, saem 20 novos baristas do curso de 160 horas do Senac, um contingente que pode ser prontamente absorvido pelas taxas ou para as unidades de cafeterias to go que se multiplicam rapidamente pela capital paranaense. "Um terço do curso é teórico, o resto é você e a máquina preparando e bebendo dezenas de cappuccinos", relata Ewerton. “O curso técnico te prepara para dominar o tempo e os movimentos: moagem, compactação, flush, encaixar o porta-filtro, fazer a extração. A pré-infusão, os ataques, o movimento no recipiente para homogeneizar os óleos essenciais da bebida. Você repete esses movimentos até virar memória muscular. Você automatiza o gesto”, completa.
Na proliferação das redes de microcafeterias com auto-atendimento, o cliente enfrenta uma fila de espera por um cappuccino montado em copo de papel. Sem salão, com poucos cafés e treinamento da mão de obra do zero dentro da própria rede, o custo de operação diminui. Ensinam-se os gestos e as receitas como uma estratégia para ampliar as unidades e servir um produto de qualidade estável, mas de pouca complexidade sensorial.
De certo modo, é uma simplificação inédita na terceira onda: eliminam-se as variáveis e torna-se a função do barista meramente operacional. As primeiras máquinas de espresso, criadas e disseminadas no início do século 20, requeriam a presença de um maquinista que entendesse como aquele imponente aparato movido a vapor funcionava. Às vezes, a pressão fazia com que o maquinário explodisse. É da unidade de medida de pressão (Física: bar), aliás, que se deriva o termo barista – ah, a ironia!
Entre ganhar pouco e ganhar mal, há um movimento gotejante, mas contínuo, de baristas que preferiram abrir pequenas torrefações e vender seus cafés como uma marca própria, ou ainda ter seus modestos salões para servir café especial em um cardápio curto, cobrando (aproveito-me da polissemia do adjetivo) um valor justo. Na parede de fundo do Manana Cafés, há um cartaz A0 em que se lê:
trabajar menos
trabajar todos
producir lo necesario
distribuir todo
Obrigada a Bruno Bortoloto do Carmo, historiador do Museu do Café de Santos; Dora Suh, do Manana Cafés; Ellen Kraus; Ewerton Lemos Gomes; e Vitor Haubert pelo tempo disponibilizado para conversar comigo. E a todos os profissionais do café que já me concederam entrevista desde 2013. Aprendo muito com todos vocês.
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