recomendações comentadas #6
tv moldando personalidades | experiência pessoal no texto jornalístico | mundos diferentes na mesma colherada
textos que fazem sucesso offline:
#7 | o preço do café especial e o valor do barista [primeiro texto do fanzine 1, sobre café]
#1 | falta de comida e falta de informação são problemas de logística [primeiro texto do fanzine 3, sobre política]
#9 | todo jantar é uma mediação política [segundo texto do fanzine 3, sobre política]
A ASPIRAÇÃO DE UMA GERAÇÃO
Num sábado à tarde em março eu desliguei um streaming na smartv e dei de cara com o Marcos Mion e a Tatá Werneck na Globo. Tatá cantava “Show das Poderosas”, da Anitta, durante o quadro “Caldeiroke” do Caldeirão do Mion – nenhuma dessas palavras está na Bíblia. Ver dois ex-MTV segurando um programa de auditório de TV aberta, com uma plateia engajada, foi o mais próximo que cheguei de uma experiência extracorpórea & de viagem no tempo, enxergando eu mesma sendo engraçadinha num churrasco de família há duas décadas.
Meu vocabulário de adolescente foi formatado pelas falas do Mion em Piores Clipes do Mundo, e o humor ao estilo MTV, especialmente o nonsense, ainda é o tipo de piada que me faz rir despercebidamente e por um longo tempo. Das coisas que me dão a mesma sensação atualmente são as personagens criadas pela TV Quase, os podcasts Decrépitos e Medo e Delírio em Brasília, e a newsletter da Isabella Thomé, Eu Destruirei Vocês. Até o nome da newsletter poderia ser um programa do canal. Costumo ler as edições da Isabella parceladamente no intervalo dos exercícios de musculação, porque eu gosto de sorrir publicamente e desafiar o ambiente que tem tudo para me deixar triste.
Recentemente, várias circunstâncias da vida me fizeram voltar ao assunto “como a MTV moldou minha personalidade”, uma delas é, claro, o conforto de escutar músicas que eu ouvi pela primeira vez aos 11 anos – No Doubt, System of a Down, Cake. Curiosamente, os álbuns dessas bandas que estão no meu repeat ultimamente são todos de 2001.
E aí a Marie Declercq publicou "A inevitabilidade da obsolescência" e senti que esse revival não é só meu. É uma geração recordando suas aspirações e entendendo onde chegaram com elas. Marie trabalhou na Vice, um portal jornalístico com matérias gonzo, pautas às vezes absurdas, mas também com reportagens investigativas, ensaios em um tom melancólico e irônico; enfim, um jornalismo que marcou a geração millennial.
"Estou assistindo o fim de um jornalismo que fez algum sentido dez anos atrás — e agora não faz mais. Não sei como classificar. Não quero chamar de “pautas comportamentais” ou “jornalismo cultural”, mas é uma junção dessas duas frentes que está morrendo (ou já morreu e eu estou tentando fazer um cadáver andar)", Marie escreveu. "O jornalismo do qual sempre sonhei [Vice] vai sumir como a MTV Brasil sumiu. [...] é apenas um marcador da minha geração que cresceu sonhando com trabalho. Eu sonhava em trabalhar com o que eu trabalho hoje. Criei minha persona online e, claro, minha personalidade ao redor do meu ofício", diz outro trecho. Marie também foi uma adolescente que assistia à MTV. Eu consigo entender (porque também vivi) como ela assimilou o coolness do canal e como a Vice teve o mesmo apelo uns anos depois.
Mesmo não tendo trabalhado num veículo descolado, eu vejo que a perda de espaço para pautas comportamentais e culturais (engraçadinhas, ousadas ou não), que permitiam ao repórter escrever com profundidade a partir de um ângulo menos convencional, se deslocaram para publicações independentes como as newsletters. Só que esse modelo autônomo, cujo financiamento vem da audiência, e cuja gestão de comunidade precisa ser cultivada pelo jornalista, tira a cabeça da pessoa do núcleo duro do trabalho diário: ler, entrevistar, escrever, reescrever, assistir, ouvir, observar.
Talvez a autora do texto não concorde com nada disso que eu tenha falado aqui, mas a minha interpretação do que ela expôs também é verdadeira. E esses parágrafos abaixo poderiam ter sido escritos por mim:
Entendo o problema de hoje em dia onde qualquer coisa produzida pelo ser humano precisa competir com vídeos de 15s e um feed infinito feito para nos viciar em baques de dopamina. Cada vez mais, veículos estão demitindo equipes inteiras porque plataformas mataram a necessidade de ler um bom artigo. Em troca, oferecem uma versão hipercondensada do assunto em um TikTok.
Insisto ainda em escrever sobre esses assuntos porque pessoalmente gosto de enxergar coisas aparentemente óbvias sob outra perspectiva. Ou ler alguém que teve o trabalho de mostrar o cenário completo e não só o recorte de uma cena.
Enfim: se aos 14 eu sonhava em ser VJ da MTV, aos 19 eu quis ser repórter da Vice. Aos 34 eu espero conseguir escrever mais e com melhor qualidade, seja para o veículo que for, e pagar as contas com essa minha expertise.
edit [11h, 19/03]: Obrigada, Pedro Mariano, por ter indicado a leitura do texto da Marie Declercq.
O JORNALISTA DENTRO DA MATÉRIA
Temos facilidade em escrever sobre nós mesmos, por isso muitos cursos de escrita criativa e escrita terapêutica têm exercícios que encorajam essa produção. Escrever sobre si tem funções distintas em cada um desses casos, mas essa não é a questão aqui. Quando estudamos jornalismo, a primeira coisa que a gente aprende é eliminar a primeira pessoa do texto. Mas a verdade é que nunca conseguimos nos expurgar completamente de uma notícia ou reportagem: nossas experiências, julgamentos, compreensões e senso de moral estão expressos em cada linha, às vezes em sintonia e às vezes resistindo à linha editorial do veículo.
Por isso achei interessante esse texto publicado no International Center for Journalists (IJNet): "Como incorporar experiências pessoais em suas matérias". A autora propõe mais consciência e estratégia ao incluir relatos pessoais nas reportagens, e como esse recurso narrativo pode ser uma maneira de criar um vínculo com o leitor, em vez de entediá-lo com uma egotrip.
Esta nota, aliás, dialoga com a primeira do recomendações comentadas #3, sobre Marcos Faerman. Vale a pena ler de novo.
ESCRITA GASTRONÔMICA NA PRÁTICA
Últimas semanas para se inscrever no curso presencial que ministro em Curitiba junto com o professor de gastronomia e designer Renato Bedore. "Escrita Gastronômica na Prática" terá quatro encontros aos sábados (6 e 20 de abril; 18 e 25 de maio) da maneira que idealizei esse curso em 2019: primeiro a gente come, conversa sobre o que comeu, e só depois escrevemos.
Teoria e prática se misturam, com exercícios coletivos e também individuais, mas principalmente muita troca sobre como enxergamos e representamos o objeto sobre o qual escrevemos. Você vai ver quanta coisa diferente cada um enxerga na mesma colherada.
O curso de extensão tem certificado de participação com carga horária de 21 horas mediante presença. Inscrições online.
SEM ALARDE
Aparentemente a newsletter fogo baixo voltou. Vamos evitar falar isso em voz alta pra não dar azar.
Muito obrigada por citar meu texto. Eu também acho que as newsletters são uns dos poucos espaços onde esse jornalismo MTV/Vice/fora do convencional vai existir, mas também não sei até quando será sustentável
Nossa, sua publicação sobre nosso tempo, em que observar o quanto era cool, ser um VJ e ler notícias na VICE, me deu um misto de quentinho no coração com uma nostalgia. É uma pena esse tempo líquido. Vai que, futuramente, pode ser cool aprofundar-se em mergulhos do que brincar na beirada do mar.