#9 | todo jantar é uma mediação política
sobre protocolos, comportamento social e disputa de símbolos
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Há gestos que eu automatizei ao longo da minha breve vida adulta. Guardanapos de pano no colo enquanto se come. Usar a faca com a mão direita. Posicionar os talheres dentro do prato, do centro para o lado direito, quando terminar de comer. Comportar-se à mesa sob essas regras é sinalizar o domínio de um código e também uma afirmação de distinção social.
Foi após conversar sobre etiqueta e deveres dos convidados com a minha amiga Ana Spengler, cozinheira há duas décadas e um exemplo de anfitriã, que acabei entrando no assunto deste texto. Eu estava desde dezembro com um esboço sobre recepção, serviço, comensalidade e comportamento à mesa; numa tentativa de apreender o que a pequena ética burguesa para almoços e jantares poderia indicar um pacto de comportamento similar ao grupo. Não consegui seguir adiante. Na tarde do dia 30 de março (ontem), deletei tudo e comecei do zero, e é por isso que este texto está mais curto que os demais.
O que me interessa no assunto "como se portar à mesa" é menos a natureza e o motivo de as regras existirem e mais sobre as possibilidades que temos de ressignificá-las quando as seguimos ou as quebramos. E me lembrei que, de certo modo, falei sobre isso em setembro quando dei uma entrevista para o jornal Plural ("Num país polarizado, ir ao restaurante virou um ato partidário"). Afirmei que a mesa não era o lugar de perdoar, e sim de compartilhar e, portanto, de respeitar regras intrínsecas ao grupo com quem se come.
Em ceias de Natal, ninguém comia antes de a minha avó fazer uma oração; ao final, todo mundo tirava seu próprio prato da mesa e levava à pia. Em um jantar em restaurante, a posição dos talheres informa ao garçom se você está satisfeito ou não; na casa de um amigo próximo, você talvez ajude em algum preparo ou lave a louça ao final.
[No último caso, aprendi que há várias etiquetas possíveis: a depender da ocasião e do grupo, tirar seu prato da mesa depois de comer pode sinalizar pressa ou quebra do momento desfrutado. Mas isso eu deixo pra Ana explicar em algum momento.]
Na maior parte das vezes, sabemos como modular nosso comportamento ou, pelo menos, imitar discretamente os gestos de quem se sente mais à vontade que nós. Existe um pacto não-verbal de que os diferentes, quando se sentam à mesa, estão em consenso, mas alertas. É o espaço em que se pode baixar a guarda, negociar e construir novas relações – não é um espaço sempre apaziguador; mas é sempre um palco.
"Aquele que não sabe receber não deve convidar". A frase é dita em tom de reprovação em uma cena do filme francês Delicioso (Eric Besnard, 2021), em que o duque de Chamfort recebe parte da nobreza para um jantar. Enquanto um séquito de garçons aguarda na antessala com os pratos de um jantar para a nobreza, os convivas maldizem alegremente outros duques e duquesas. O duque de Chamfort havia definido o menu da noite, e seu cozinheiro, Pierre Manceron, coordenou dezenas de pessoas para preparar e servir o jantar com perfeição.
Assim que abrem as portas da sala de jantar, Manceron serve uma pequena empada de batatas com trufa, apelidada de delicioso, um prato que não havia sido pedido pelo duque. Uma gafe indesculpável. Para piorar, o recheio era de ingredientes pouco valorizados pela nobreza – "os únicos conhecedores da boa mesa" – e foram atirados pelos convidados no chão, junto com os pratos de porcelana. A humilhação sentida pelo duque o faz demitir Manceron.
O cozinheiro muda-se para uma estalagem a alguns quilômetros do palácio de Chamfort e, após algumas semanas entregue à melancolia, seu filho o estimula a cozinhar para os viajantes, que reclamam da sopa de vegetais do rapaz. Não me alongarei sobre o enredo, mas posso dizer que o filme é um exercício narrativo do que poderia ser o mito fundador da origem dos restaurantes, uma vez que se passa em meados do século 18, na França campestre.
Aos poucos, Manceron desloca a técnica e o serviço de uma casta economicamente superior para a função do salão popular da estalagem: serve uma sequência de pratos em uma mesma refeição, com serviço à la carte e atenção ao comensal. Aos poucos, vemos Manceron transformar o salão em um espaço de homogeneização social. O restaurante como a grande mesa que reúne os diferentes.
Conhecer e praticar o protocolo também é o requisito para poder negá-lo – de outro modo, a ruptura é vista apenas como gafe. Demonstrar entendimento da importância da cerimônia e, mesmo assim, optar por sair do roteiro tem seu valor; valer-se das convenções para inserir-se em um contexto que não é o seu, também. As afirmações que se fazem quando se subvertem os protocolos só têm poder quando há uma mensagem ao status quo. Foi nessa linha que pensei quando vi Will Smith interromper a fala de Chris Rock com um tapa durante o Oscar, e é assim que vejo as quebras de protocolo do recém-eleito presidente chileno Gabriel Boric em sua posse, ao cumprimentar pessoalmente os prestadores de serviço e trabalhadores.
O código de boas maneiras é alterado e validado continuamente pela hegemonia cultural – não há nada estanque no que é considerado o comportamento adequado. Enquanto ferramenta, penso que a minha parca noção de etiqueta foi o que me fez ter uma adaptação sem sobressaltos ao universo dos restaurantes e eventos caros quando precisei cobri-los como repórter ou quando quis conhecer por conta estabelecimentos estrelados. Coletar informações, contatos e oportunidades em um universo do qual não se faz parte exige o uso desses códigos e, há, claro possibilidades latentes ao se inserir em ambientes de poder. A norma é o que nos faz passar desapercebido. Invisível. Pertencente.
Todo jantar é uma mediação política. Por menos formal que seja, há um exercício de poder de uma parte e de adequação dos demais. Começa pela série de decisões que o anfitrião toma – os convidados, o menu, a ocasião, os horários –, e passa pela criação de uma circunstância para o encontro. Em certos casos, a etiqueta será uma camuflagem; em outros, um comportamento tão natural que sequer notamos. O que não muda é a ocasião: as etiquetas só existem para mediar o nosso contato social e garantir que, quando cada um desempenha o papel esperado de si, tudo transcorra tranquilamente e se possa aproveitar a potência dos encontros.
Ao fazer com que o povo se apropriasse de parte dos códigos de nobreza, Manceron enfraquece a hegemonia dos duques e de seus símbolos, que passa a ser ressignificado por diferentes grupos. Esse movimento é contínuo e menos perceptível no nosso cotidiano do que retrata o filme. Basta pensar no status do estrogonofe, que foi de prato sofisticado à comida do dia a dia em poucas décadas, sem uma queda abrupta. Todo símbolo é passível de ser disputado e de ter seu sinal invertido. Tudo sobre a mesa está em disputa, não só o saleiro.
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