#1 | falta de comida e falta de informação são problemas de logística
paralelos entre o abastecimento do material e do imaterial
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[⚠️ aviso: esta edição contém links afiliados, o que significa que eu recebo uma pequena comissão caso você compre o livro indicado 🙃]
[um longo prelúdio]
Passei pelo menos dois dias pensando em um tema que fosse digno de virar texto para estrear essa newsletter. Minha primeira newsletter da vida, depois de mais de duas décadas on-line. Por que não adotei esse formato antes? Não sei. Acho que confiei na perenidade do que está on-line graças às páginas em cache, demorando a perceber que o volume de informação publicada fosse soterrar, cada vez mais rápido, textos e fotos demoradamente pensados.
O certo seria migrar o conteúdo a cada mudança de plataforma, fazer backup, manter salvas as imagens em sua máxima resolução. E aí rearranjar tudo no cômodo vazio da rede social do momento.
Não sou boa nisso. Pulverizo minhas linhas por toda parte desde 2009, quando eu comecei a publicar. Escrevi blogs (Tô Puta e Vou Cozinhar e Verdura sem Frescura), tive um podcast (Ouvindo Abobrinhas) e trabalhei como repórter. Para fazer as reportagens e o conteúdo dos projetos pessoais chegarem a mais gente, precisava distribuí-los nas redes sociais. Tive fan pages no Facebook, devidamente abandonadas há mais de dois anos, quando o alcance já era pífio e a timeline, de um ar quase irrespirável. Agora vago sem norte, considerando o Instagram minha bússola temporária enquanto outro aplicativo não toma o seu lugar.
A dificuldade da mudança de plataforma não está em aprender a usar uma nova ferramenta (oi, TikTok!) nem em desenhar as pautas que funcionem naquele universo, e sim em encontrar a audiência. Quando você já está mais ou menos confortável na dinâmica, a mudança de algoritmo tira seu assento e você precisa correr para garantir seu espaço na mesa, nem que para isso você compre o seu lugar. Que cansaço. Vou me sentar no chão mesmo.
É isso que me traz aqui, a essa primeira newsletter. A única certeza que temos no universo virtual é que manteremos um endereço de e-mail por um longo período. Escolhi o formato newsletter em vez do saudoso blog pela comodidade de saber que, se eu quiser mudar a plataforma em que escrevo meus textos, a minha audiência seguirá os recebendo (caso não caia na pasta de spam) e parte dos vínculos criados com quem me lê e me escreve estará mantido. Para mim, neste momento, é o suficiente.
Não saberia como colocar meu conteúdo nesses espaços temporários, de fluxo variável, e tendo a própria plataforma jogando contra mim, sua fiel (mas não pagante) usuária. A newsletter me dá um senso de unidade, de limitação espacial e de morada perene. Me sinto melhor aqui, sentada a uma pequena mesa, tête-à-tête com você.
Passar as horas livres escavando o sambaqui de conteúdo infinito acumulado diariamente nas timelines é como almoçar todos os dias um pacote de salgadinhos, de pé, num ônibus lotado, esperando que de dentro da embalagem saia magicamente um prato feito. Eu sobrevivo há anos a esse péssimo hábito; imagino que você também.
Descubro fortuitamente textos e assuntos que me interessam, mesmo que eu seja o público-alvo, porque não há tráfego pago para a gôndola saudável da internet. A degustação gratuita do que não nutre, por sua vez, é abundante: boatos, notícias falsas, fotografias adulteradas, vídeos com argumentação falaciosa, textos sensacionalistas – tudo isso é entregue sem custos para o leitor. Alimenta-se o povo com Cheetos Bola em vez de arroz e feijão.
Quem não tem tempo ou conhecimento para distinguir o que é verdade do que é mentira (o termo fake news me soa como um oxímoro que mal serve para categorizar as paródias de notícia), acredita em tudo que lhe pareça verossímil e acaba se alimentando do que estiver disposto “casualmente” em seu caminho. “O primo do porteiro aqui do prédio morreu pq foi trocar o pneu do caminhão e o pneu estourou no rosto dele. Receberam o atestado de óbito como se fosse a covid-19. Eles estão indignados”. Devora-se avidamente o Cheetos Bola. Gera mais engajamento. Tem um shelf life longo. É crocante. Seu realçador de sabor atiça as papilas gustativas.
A culpa não é de quem se alimenta de calorias vazias e de sensacionalismo, mas de quem proporciona as condições para que se falte alimento e sobre desinformação. Não é de se espantar que um governo que se elegeu produzindo em série e anonimamente informações ultraprocessadas, reconstituídas e flavorizadas artificialmente e as vendendo como uma superfood esteja agindo como está.
Trabalhar para destruir os parâmetros da razoabilidade do debate público, plantar dúvidas sobre eventos históricos e perder a vergonha de assumir uma postura que seria execrável há dez anos sob um verniz de “coragem” são ações bem planejadas para impossibilitar o diálogo democrático e esvaziar todo e qualquer assunto que não lhes interessa. A preparação do terreno vinha sendo feita há anos.
Um governo permissivo, que escolhe a ausência de regulamentação pensando em pessoas jurídicas e é omisso no que tange os direitos de seus cidadãos, prova que toda falta é uma falta planejada. Falta de comida e falta de informação não são resultados de péssimas escolhas individuais. São problemas de gestão pública. São problemas de logística.
Não ter vacina, não ter segurança alimentar, não ter desapropriação de terra improdutiva e não garantir a proteção aos povos originários (e mais: até hoje o Brasil não ser um estado plurinacional) são as estratégias mais despudoradas para estreitar o gargalo e contribuir para que, hoje, a falta de comida assombre 125 milhões de brasileiros. Saúde para trabalhar e terra para produzir comida são os mínimos denominadores comuns para podermos começar a falar de segurança alimentar.
Mas não é assim que um Estado sob a influência e pressão do agronegócio interpreta o acesso à comida, e isso há décadas. Vender commodity não coloca comida no prato de ninguém, só aumenta a porção de quem já tem. Esperar que a fatia das receitas da monocultura de soja, milho, café e dos populosos rebanhos de gado paguem por cestas básicas para que o brasileiro não passe fome é optar pelo caminho mais longo entre a mão e a boca.
Essa linha de raciocínio de se defender de uma argumentação clara usando um labirinto confuso como resposta me lembra a indústria de ultraprocessados engambelando a agência reguladora sobre os avisos de excesso de nutrientes em suas embalagens. A ideia apresentada pelo setor para responder à proposta dos avisos triangulares foi a de um semáforo, que confundia mais do que informava ao consumidor sobre a composição daquele produto. Por que se perdeu a vergonha de defender tão abertamente a imprecisão?
No lobby feito pelas indústrias é compreensível o uso dessa antiga estratégia de apostar em eufemismos. No caso da desinformação espalhada por plataformas de mídia, no entanto, responsabilizá-las é uma tarefa difícil, escorregadia e as ações possíveis de imediato, como a regulamentação das redes sociais, requerem um governo com o mínimo de comprometimento com a verdade – caso contrário podem sair pela culatra.
Nesse espaço com normas dúbias e alegando promover a liberdade de expressão, as empresas privadas controlam duramente a postagem de nudez, mas acenam coniventes à passagem do pelotão de racismo, homofobia, ataques à democracia e demais absurdos que germinaram e cobriram esse descampado, graças ao rico fertilizante que é o estrume. O que nos resta é pegar a foice e começar a roçar.
[com esse texto provei mais uma vez a mim mesma que criar uma frase de efeito é mais fácil do que dissertar sobre o seu significado]
Não faço ideia de que tipos de texto e assunto estarão nesta primeira parte da newsletter no futuro. O que planejo para as outras seções dela é uma extensão do conteúdo que tenho postado no Instagram, com dicas de livros, receitas, filmes, links e demais coisas que eu considerar interessantes. Espero que a seleção seja do agrado do freguês!
Também pretendo usar o espaço para avisar em primeira mão sobre lançamentos de cursos. A algumas linhas abaixo desta, você encontra o link para a segunda turma do curso Como Escrever Sobre Comida. Vou, também, usar o espaço para mostrar um pouco do que estou trabalhando.
ANOTAÍ
tudo o que vale a pena repassar
Postei no Instagram uma “barra” de chocolate que fiz há uns sete anos e que eu adoraria comer de novo. É uma combinação de chocolate 70% cacau com amêndoas torradas (é possível ver a quantidade absurda que usei nos contornos da superfície), flor de sal e tomilho fresco.
A ideia foi tirada do livro Dicionário de Sabores, de Niki Segnit, e a minha vontade de provar a combinação me fez simplificar o exemplo que a autora cita. A dupla tomilho-e-chocolate foi parar no livro porque compunha uma das sobremesas do The French Laundry e Per Se, restaurantes do chef Thomas Keller, na Califórnia. “O restaurante parisiense Taillevent, onde Keller já trabalhou, é famoso por servir sorvete de tomilho com petit gâteau de chocolate, relativamente fácil de preparar em casa”, Niki escreve.
Eu não sou fã de executar receitas com muitas etapas e de duração prolongada (meu negócio é sobremesa que vai do liquidificador pra travessa), mas quem sabe interessa a alguém reproduzir a receita? Lá vai:
sorvete de tomilho
receita retirada do livro Dicionário de Sabores
10 galhos de tomilho bem fartos
275 ml de leite integral
4 gemas
90 g de açúcar refinado
300 ml de creme de leitejunte os galhos de tomilho em uma panela com leite integral. escalde-o e deixe esfriar. tampe e deixe macerar na geladeira durante a noite. no dia seguinte, ferva o leite e o tomilho novamente e coe.
em uma tigela, bata as gemas com o açúcar. lentamente, despeje o leite macerado com tomilho morno nessa mistura, mexendo sem parar. transfira tudo para uma panela limpa e mexa no fogo baixo até engrossar, sem deixar levantar fervura. a mistura atinge o ponto desejado quando recobrir completamente as costas de uma colher.
passe por uma peneira fina, junte o creme de leite, deixe esfriar e congele normalmente, enquanto você prepara os bolinhos.
Lembre-se de que a ideia é tomar o sorvete com um petit gâteau de chocolate. Caso contrário, você poderá se frustrar com a limitação da experiência sensorial.
PS: se você preparar essa receita, me manda uma foto?
PETISCO
uma coisinha rápida antes de você sair
Escrevi sobre a apuração da reportagem "Segunda onda de erva-mate toma corpo no Sul do Brasil” para o blog da Chimatearia, a empresa que organizou a Avaliação Nacional da Erva-Mate em fevereiro desse ano. Está aqui! Neste link você também encontra a gravação da live da qual participei na quarta (16).
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