#12 | o que diz a comida
há um discurso embutido em toda representação da comida, seja em páginas, telas ou pratos
Esta edição está atrasada. As próximas não estarão. Anote aí:
11 de agosto: recomendações comentadas #3
21 de agosto: entrevista (a definir)
Com a entrada da seção recomendações comentadas, os conteúdos passam a ter dez dias de intervalo entre si. Nos dias 1, uma reportagem ou ensaio. Nos dias 11, recomendações comentadas. Nos dias 21, uma entrevista.
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Este texto foi baseado na aula Ler, Escrever e Pensar Gastronomia, que ministrei no dia 19 de julho na Jornada de Inverno da Gastronomia do Comida de Pensar – Escola de Humanas. obrigada ao organizador e professor Guilherme Lobão, que fez a mise en place para eu finalizar, e a todos os inscritos que contribuíram no chat e que estenderam a discussão via DM depois. A aula está na íntegra no Youtube.
No prato e na página, a seleção do que ficará de fora é tão importante quanto o que estará emoldurado. O vídeo acima é o estado bruto de um encadeamento de ideias; o equivalente a servir uma refeição em panelas. Com o devido contexto, não seria falta de educação apresentá-la dessa forma. Mas, nesta newsletter, o serviço é à francesa: eu quero que você leia o que eu penso da forma mais clara possível, com etapas, temperatura e ritmo que eu considero adequados. Abaixo, organizei parte do que eu falei durante a aula, como um primeiro teste de empratamento do conteúdo – pequeno como um amuse-bouche.
Começo minhas aulas de escrita gastronômica dizendo que nós, seres humanos, comemos e contamos histórias desde os primórdios do sedentarismo e rudimentos de linguagem. É possível que, nesses milhares de anos, falar sobre comida seja algo corriqueiro há mais tempo do que as evidências históricas comprovam. No entanto, seguimos fazendo a mesma coisa. Repaginando assuntos. Por que seguimos fazendo isso? Por que deixaríamos de falar disso?
Se, enquanto espécie, vamos nos repetir, que a voz autoral tente avançar para além do que já foi dito ou, pelo menos, que tenha clareza ao arrolar seus argumentos. Nem sempre é fácil: um texto que se pretende original nas ideias e estrutura não é escrito linearmente, de forma rápida, e de uma só vez. Exige, como a pesquisa de um novo ingrediente, alguns testes. Salteia-se a ideia. Frita-se por imersão. Cozinha-se em sous vide, por horas, até amolecê-la.
O prato autoral e o texto são maneiras de organizar visual e intelectualmente o que se quer apresentar e comunicar ao comensal. E, a depender do teor da informação, a maneira de finalizá-la pode enfraquecer todo o argumento.
Compõem-se um prato com o que deve ser comido; escreve-se um texto com palavras e frases eloquentes. A potência desse preparo dificilmente é alcançada num primeiro teste: coisas vão faltar, coisas vão sobrar.
Quando narramos, narramos com viés. Mesmo o repórter mais desejoso pela imparcialidade vai falhar: podemos contar uma história equilibrada, com esforço e consciência, mas o filtro sempre será a própria experiência, a presença do próprio corpo no local, as sensações e conclusões resultantes de uma conversa feita pessoalmente com alguém.
A comida não é um assunto exclusivo da não-ficção, mas a essência de narrá-la, sim.
Incluir a comida como um elemento pontual de uma narrativa ficcional requer tanta especificidade quanto ao citá-la em uma reportagem de gastronomia. A descrição de um protagonista preparando arroz, temperando uma carne ou fritando um ovo, se não for verossímil, pode causar estranheza ao leitor. Ainda que se criem novas regras para o universo, como em ficção científica e fantasia (os únicos gêneros literários em que se come o que não existe), os alimentos inventados partem de algo existente, seja para emulá-lo, seja para negá-lo. A solidez do texto, seja na ficção ou no jornal, vem do uso de informações reais e de fidelidade aos fatos.
A comida não precisa ser a protagonista ou o principal assunto da trama para que os hábitos alimentares de um personagem e seu comportamento à mesa funcionem como indícios para o leitor. O que ele come (e como come) revela aspectos de sua identidade, classe social, localização, adaptação e origem, por exemplo, ou pelo menos a ideia que o autor tem de como sinalizar essas características. No audiovisual, esse direcionamento do olhar do espectador é feito de maneira menos sutil: se se quer chamar a atenção para o que um personagem está comendo, as cenas trarão planos fechados ou em detalhe.
Assim como a câmera foca no prato do protagonista, a escolha do ângulo, palavras e particularidades na escrita também deveria ser uma ação deliberada do autor. O que é narrado é percebido.
Esse recorte deliberado fica evidente na não-ficção, especialmente no jornalismo, uma vez que o espaço é pouco; a mão de obra, precarizada; e o tempo, cada vez mais curto. As decisões do que entra e do que fica de fora da página são guiadas por critérios de noticiabilidade, um conjunto de valores-notícia cada vez mais inclinado a noticiar o que parece novo ou inovador e o que é curioso o suficiente para render cliques.
Simplificarei meu entendimento do que é o jornalismo definindo-o como "um método de trabalho que torna público o que existe", uma definição ampla de propósito. Aplicando esse entendimento ao jornalismo gastronômico, os olhares dos repórteres e editores costumam focar nos extremos da manifestação culinária: a defesa de uma tradição gastronômica (o preparo "legítimo" de algo) ou a provocação ao status quo (onde se concentra o noticiário sobre chefs). O pêndulo do jornalismo gastronômico oscila entre ambos, que se encontram na ponta final da cadeia de produção.
A produção de alimentos nem sempre será material de cunho gastronômico, é verdade, mas enquanto parte do universo de alimentação, a gastronomia depende de um sistema maior para se sustentar. Tomando como ponto de partida o que existe, o jornalismo gastronômico teria de mirar também no que antecede o prato na mesa e passar a olhar para o trivial, para o que acontece na zona cinzenta entre tradição e inovação.
O que existe na cadeia de produção de alimentos entre o campo e o prato; a vida dos trabalhadores dessas várias etapas; os costumes alimentares heterodoxos ou contraditórios de um grupo (o que esses comportamentos simbolizam?) – tudo isso requer mais distância dos restaurantes e mais proximidade com a vida real, em que chefs não têm o protagonismo. A passagem abaixo, de Brillat-Savarin no livro A Fisiologia do Gosto, é de 1825, mas não poderia ser mais contemporânea:
O assunto material da gastronomia é tudo o que pode ser comido; seu objetivo direto, a conservação dos indivíduos; e seus meios de execução, a cultura que produz, o comércio que troca, a indústria que prepara e a experiência que inventa os meios de dispor tudo para o melhor uso.
UMA MIGALHA
Frase que sobrou no meu rascunho:
O cardápio transita entre os dois tipos: nos propõe um exercício imaginativo, como faz a ficção; e nos promete a comida que existe, como nos mostra a não-ficção.
Amei e revivi a aula! Mas injusto chamar de migalha essa frase que sintetiza tanto e que merece estar colada pelas ruas das cidades!