[entrevista: Guilherme Lobão] gastronomia em transe, bulimia da percepção e recozinha
num mundo hiperconectado, em que a comida virou ela própria uma mídia, olhar e paladar procuram avidamente novas experiências em ciclos cada vez mais curtos (e cronicamente insatisfatórios)
Vi um cartum do Bruno Maron outro dia com o seguinte diálogo:
– Comecei a ouvir o tal do "Bala Desejo"
– Aff, Bala Desejo é tãaaaao 2022
Em dez anos cobrindo gastronomia, eu já fui essa interlocutora incontáveis vezes – a que responde de forma blasé, evidentemente. Petit gâteau de doce de leite? Gema curada? Prime rib dry aged? So last season. A novidade no mundo jornalístico sempre durou pouco e tem durado cada vez menos.
Em restaurantes de alta cozinha, em que uma bocada contém informações suficientes sobre a sinergia de sabores e contrastes de texturas, a novidade pode durar uma temporada. O storytelling de cardápios tem que ser atualizado constantemente, mesmo que signifique repetir os temas produtor local e técnica artesanal. Isso também não significa que a barraquinha de cachorro-quente seja atemporal e imune às modas e à pressão de performance do século 21 – no Instagram, o menor dos carrinhos de hot dog pode informar a um numeroso séquito de seguidores suas invenções entre pão e salsicha.
Esses sucessivos encantos e desencantos pela comida são parte de um ciclo de crise estética que se repete, no qual a gastronomia é "um fenômeno em estado de particular instabilidade, trânsito e inquietação", como coloca Guilherme Lobão em sua tese "Gastronomia em transe: Itinerários de crise estética da comida contemporânea". Lobão é colega de imprensa e professor, e defendeu seu doutorado em maio no programa de Comunicação na linha de Imagem, Estética e Cultura Contemporânea.
"O fim do ElBulli em 2011 trouxe também um azedume para a gastronomia molecular, que começa a ser considerada uma expressão kitsch da cozinha moderna. As crises estéticas também determinam o fim das próprias expressões que criou. Em seu lugar, vieram movimentos nem tão homogêneos. A cozinha peruana nikkei e fusion, que começa a combinar elementos de diferentes culturas culinárias; a gastronomia de rua norte-americana, com a premissa de oferecer a expressão “autêntica” das cozinhas de imigrantes; e chefs brasileiros que exploram ingredientes nativos de regiões indígenas e quilombolas autóctones com a finalidade de expô-los como iguaria exótica no menu-degustação de restaurantes caríssimos, para um público urbano".
Para analisar a relação humana com a fruição, compreensão e ingestão (material e virtual) da comida na contemporaneidade, Lobão cunha a categoria sujeito gastronomizado. "Temos vários sujeitos historicamente. O sociológico, o histórico, o pós-moderno, o iluminista. São sujeitos configurados a partir das relações sociais. O sujeito gastronomizado é uma elaboração para dar nome a esse sujeito que nas pesquisas de gastronomia chamamos de comensal e cliente. Eu precisava de um nome com mais profundidade, principalmente por conta da retórica e do fundamento da discussão", explica.
O debate passa pelo uso de plataformas digitais e sua oferta crescente de imagens e vídeos em um mundo globalizado, hiperconectado, de tendência à homogeneização de representações e de consumo. Mesmo o menos interessado em realities shows gastronômicos, redes sociais de chefs, restaurantes ou bares estrelados; mesmo esses tipos têm expectativas de uma experiência ao comer, nem que seja o ponto do churrasco do cunhado no domingo.
O consumo vertiginoso da comida como gênero narrativo, comida com os olhos, seria o que Lobão definiu como “binge tasting” e “bulimia da percepção”.
Os anos 2000 – e mais ainda os 2010 com suas receitas ultrapráticas, de montagem dinâmica e menos de 30 segundos – transformaram a sociedade de consumo em voraz consumidora de comidas virtuais.
Estamos todos, em alguma medida, dessensibilizados pela alta exposição imagética e de discussão acerca da comida. Ela própria vira um veículo de informação e discurso, um preparo que estamos consumindo muito mais virtualmente que à mesa. Lobão cita Helena Jacob e sua tese de 2013, na qual investiga como os ambientes televisivos e digitais afetam a relação simbólica das pessoas com o alimento. "A experiência estética da comida não é só o que está dentro de um menu degustação que quer contar uma história. Um mero de chupar bala é uma experiência estética", ilustra Lobão.
Não faltam predicados a Guilherme Lobão: é professor universitário, jornalista cultural, crítico de cinema filiado à Abraccine e crítico gastronômico. Trabalhou no Jornal de Brasília, Correio Braziliense, BandNews FM, Veja Brasília e Metrópoles. Atualmente, está com o quadro CBN Sabores, no programa CBN Brasília. Lecionou nos cursos de Gastronomia, Jornalismo, Cinema e Publicidade no Instituto de Educação Superior de Brasília e atualmente é professor no Centro Universitário do Distrito Federal.
Eu o conheci pelo hub Comida de Pensar, iniciativa de Lobão que reúne as frentes de educação, conteúdo e curadoria, com um curso de formação (turma de fevereiro: ainda tem vaga!), comunicação e curadoria. É de sua autoria a newsletter Coffice, que sai fresquinha toda segunda de manhã, com os temas café e trabalho, uma abordagem original sobre a junção dos universos. No início de fevereiro, colocou no ar o blog Garfo do Crítico, sua volta ao mundo da crítica gastronômica em texto.
Sei que ando em corda bamba ao tentar escrever sobre o trabalho de Lobão, mas é preciso correr o risco de tentar exemplificar de maneira simples algumas coisas para que elas cheguem mais longe. "Eu trago exemplos na tese, mas me forcei a fugir deles baseado no que o professor Pedro Russi fala sobre explicar o conceito, mais do que exemplificá-lo. Explicar o conceito para encontrar algo novo, porque exemplos não dão conta da complexidade do conceito", disse Lobão. Arruinei esse plano dele ao conversarmos por telefone por quase uma hora e meia. Abaixo, a conversa editada e reorganizada para melhor compreensão:
Logo na introdução você escreve que "Comer pode ser [...] um ato estético. Reconhecê-lo como tal na contemporaneidade não pode se limitar ao valor do belo" [página 23]. Qual o conceito de estética adotado na tese?
Todo mundo fica perdido quando se traz estética para o campo da gastronomia, que é um campo dominado pela estética prática, a visual. Para boa parte dos teóricos e filósofos, a comida não poderia estar no campo da estética porque não se apresenta de uma forma que se possa fruí-la pelo audiovisual. Carolyn Korsmeyer, em 1990, na Universidade de Chicago, rompe com essa tradição; o próprio Epicuro entendia isso também, de que o valor da comida está além do fisiológico. A comida na boca e no olfato quer dizer algo. Essa construção de sentido não era considerada quando falávamos de estética.
Trabalhar a estética da comida é uma tradição muito nova no Brasil. Ninguém abordou isso diretamente. Tem coisas que batem na trave, como Raul Lody, Câmara Cascudo e Carlos Alberto Dória. Mas não citam isso de forma dedicada. O que proponho é a representação dos sentidos, dos sentimentos ligados aos sentidos, e o aspecto de fruição sensorial usando todos os sentidos que vem a partir do nosso contato com a comida.
Tem alguns caras que entendem a estética como um fenômeno cotidiano. Uso muito o Gumbrecht na tese, que fala de pequenos arroubos estéticos e exemplos mais corriqueiros: quando você pisa em folhas secas e elas estalam, há uma admiração do próprio belo. Na comida, isso vai acontecer como o [Marcel] Proust já trouxe anteriormente [no livro Em busca do tempo perdido], com o efeito das madeleines e chá na vida adulta, ele lembra da mordida na sua infância. E esse efeito foi bem traduzido com o filme Ratatouille para os novos tempos. É uma abertura para essa epifania.
Existe uma capacidade da comida de revelar emoções e características para além de beleza, que envolve outros aspectos. A comida não é uma obra de arte, mas sim um lugar de experimentação ou de revelação estética.
Então por estarmos vivendo em um período de diversidade de experiências e de acesso a diferentes alimentos, temos menos consenso sobre o que é o "belo"?
Sim, bem menos consensos. Temos a experiência com a comida maculada. Não existe mais a comida nua; você não experimenta mais a comida. É uma comida carregada de aspectos simbólicos culturais e até midiáticos. As informações midiáticas mudam nossa percepção e receptação do alimento. Podemos achar legal ou não, gostar ou não. A estética não se resume à epifania do Proust. Quando pensamos no mundo contemporâneo, o grande negócio da estética é estar no fato de o belo não ser um estatuto, não ser a beleza clássica. O belo está em disputa. O campo da estética é um terreno em disputa.
Você cita uma série de momentos importantes na gastronomia mundial em poucos anos, desde o fechamento do ElBulli até a criação do slow food, que pauta uma "nova estética", do bom, limpo e justo. As crises na gastronomia e as quebras de paradigmas são mais frequentes na contemporaneidade?
Há uma efemeridade dos ciclos na gastronomia. O slow food também é mais um desses ciclos, o que ele pode ter promovido foi uma ruptura na questão ética. Quando falo sobre a crise estética, eu não uso o termo para me referir ao feio. As crises estéticas são as quebras que alimentam esses ciclos da gastronomia, e os ciclos são pistas do que está acontecendo. A gastronomia vive em crise.
Na contemporaneidade, esses ciclos estão mais próximos e acontecem o tempo inteiro. Mas isto sempre aconteceu. Do banquete de Luís XIV até o início da gastronomia profissional francesa da Revolução, os ciclos foram ficando cada vez mais próximos um do outro. Hoje, a trend do TikTok pode durar uma semana. A crise está no nosso relacionamento com a comida. É uma crise mais ampla do que pensar só na duração das modas.
A gastronomídia, termo da Helena Jacob, é justamente a gastronomia, ela própria, sendo uma mídia. Ela que pauta o debate e traz sabores e as coisas que queremos comer. Hoje os restaurantes trabalham no que se vê na internet. É o marketing.
A hiperconectividade e a "gastronomídia" estão enfraquecendo a nossa relação com a comida?
Quanto mais acelerado, mais fraca a relação. Quanto mais fraca a relação com a comida, maior a necessidade de um novo ciclo. [Byung-Chul] Han, autor de A sociedade do cansaço, escreveu outro livro que uso na tese, A salvação do belo. Ele traz uma chave para entender isso. No ciclo das artes, da nossa vida cotidiana, há uma busca, uma predição do que vai ser belo ou o que podemos fazer para nos integrarmos na sociedade da beleza. Uma delas é a tecnologia. O exemplo do iPhone, segundo Han, foi o touchscreen, que elimina qualquer barreira de estética do tato com o deslizar do dedo no telefone. Antes era o botão, a negatividade.
Na gastronomia é o mesmo. A comida precisa estar absolutamente integrada ao conceito e à expectativa de "ser surpreendido" de quem vai comer. A salvação do belo na gastronomia não está com quem está inovando. Quem inova trabalha na perspectiva de se integrar a essa sociedade que é positivista, como o filme "O Menu". O filme traz essa questão curiosa no personagem: a expectativa do camarada precisa ser atendida, e a expectativa dele é que tudo vai ser sensacional. Qualquer experiência.
Até a comida estranha é uma comida mais fácil de ser aceita e compreendida do que a comida que nos escapa. O slow food e PANC, por exemplo, trazem mais legibilidade a esses ingredientes usando as artimanhas do processo midiático ao transformar uma planta comum daquele bioma em uma "coisa estranha". Nomeia-se "não convencional" para que ela seja aceita de volta. Com um novo nome, ganha um novo predicado de aceitação.
A gente consome muito mais o discurso, a imagem da comida, do que a comida de fato. É isso? Estamos vivendo do que o marketing fala e não do que estamos provando?
O binge tasting é uma das grandes descobertas da tese, pelo feedback da banca. As pessoas estão provando o vinho que você coloca na sua timeline. Elas estão conhecendo o produto por ali e emitindo opinião a partir da opinião que você compartilhou. Sem nem ter visto ao vivo, nem provado o vinho. É tudo fictício.
Há um consumo exacerbado de imagens que não vai fazer tão mal quanto a compulsão alimentar de fato, mas é uma alimentação visual. Os efeitos desse binge tasting são menos graves, mas no longo prazo traz um problema, como todo processo de binge watching ou de doom scrolling. Estamos nos alimentando de algo que não existe nos termos gastronômicos, em termos de textura, sabor, olfato e audição, tato, tudo.
Estamos comendo mais com os olhos, mas dando atenção a uma comida fictícia.
Consumimos apenas pelos olhos e talvez pela audição, quando passam a faca sobre a pururuca para mostrar o quanto tá crocante. Isso desperta o senso de "eu conheço esse sabor", mesmo sem você ter comido. Isso se projeta na sua mente como se você tivesse provado. A gente tá perdendo a compreensão do que de fato estamos nos alimentando. Um exemplo bem curioso que ilustra isso é quem come pipoca ou miojo enquanto assiste ao Masterchef.
O sujeito gastronomizado seria o pós-modernismo à mesa?
O sujeito gastronomizado é um departamento dentro do sujeito pós-moderno. Ele age, pensa, atua e vive sua vida capturado pelo senso da gastronomização, do entendimento do sentido gastronômico. Ele vai reconhecer isso em todos os níveis da sua vida. Esse é um grande sintoma desse sujeito. Ele tem suas predileções pautadas pela mídia gastronômica, o imperativo gastronômico molda sua concepção de mundo desse sujeito. O termo é uma forma de dar nome a esse sujeito, que seria quem come, e não categorizar um comportamento individual.
Em um trecho da sua tese, você escreve que "a questão da gastronomia contemporânea não pode se limitar à compreensão de uma elitização da experiência com a comida, senão também observando a intempestividade, sintoma máximo do contemporâneo (...) [em que] o intempestivo remonta à condição de uma recusa em se engajar no tempo presente" [página 30]. Quais são as expressões gastronômicas que você identifica que não querem se engajar no momento presente?
Estamos falando de um universo que está dentro do algoritmo e de uma busca perene de renovação e de novo status quo. Isso está acontecendo com todo mundo. Hoje tem grupos indígenas trabalhando com sua própria gastronomia para contexto urbano, mas eles precisam do contexto da mídia para criar relevância e chegar às pessoas. Não me interessa criticar esses processos. Mas existe uma questão que é a comida nua [do discurso midiático; a fruição "inocente" de uma refeição]. Nunca mais vamos ter comida nua. Eu concluo a tese dizendo que devemos buscar o caminho de volta. Não significa que vamos encontrar essa comida nua. Chegamos até aqui e deu errado, vamos voltar. Aí chego na recozinha.
Onde se manifesta a recozinha hoje?
Você não sai de si. Esse é o grande lance do restauro: as coisas foram se quebrando e agora temos a chance de não passar apenas por uma demão de tinta, mas de discutir tudo da gastronomia, que agora está se fazendo de um jeito e precisa ver outro jeito. A caminhada do ser humano é essa, o Sankofa: olhar para trás e ressignificar o futuro. Assim também na gastronomia. A recozinha compreende uma dialética da memória que opera a transformação pela própria redundância.
Quando o Han fala sobre como vamos fazer para resgatar e salvar o belo, para que ele possa significar algo que não seja o positivismo, a resposta que ele traz é a salvação do outro. Salvar o outro é salvar o belo. Os lugares onde conseguimos encontrar a recozinha estão, por exemplo, nos processos e projetos em que você serve ao outro. A hospitalidade, a dádiva, você reconhecer o outro e dar valor a ele.
Quando a gastronomia perde a dimensão de servir o outro e se elitiza ou se banaliza, tudo começa a escoar pelo ralo. E para a gastronomia se fazer relevante de novo, ela precisa se conectar com as pessoas.
Não de forma romântica "isso aqui me lembra a minha avó", mas de se conectar às pessoas. O exemplo que dou no meu curso é o Ghetto Gastro, um coletivo de produção de comida identitária negra da periferia de Nova York. Eles usam isso para que os negros em posição de trabalho, de subemprego, de atendimento, de cargos menores da cozinha, preparem a comida que eles fazem em casa, a cozinha que eles conhecem, e ver que essa comida pode ser servida para outras pessoas. O Vegano Periférico, de São Paulo, também. O veganismo é uma pauta que se tornou elitizada, e eles provam que não precisa ser assim. Tem uma questão ali de fortalecer e favorecer as pessoas que estão precisando e que podem ser donas do próprio destino e das próprias escolhas para que elas não fiquem sob o jugo de que "para comer bem precisa de dinheiro". O Edson Leite, que trabalha com o aproveitamento total do ingrediente. Até a Rita Lobo, Bela Gil e os chefs estrelados fazem parte desse fenômeno, que é usar a gastronomia para produção do oportunismo social. Faz parte do jogo.
Que entrevista, Flavia! Ela toca num monte de incômodos que eu sinto, mas tem dois que eu fiquei aqui batendo a mão na mesa falando "issooo"! O primeiro é esse lá do finzinho, em que ele fala sobre uma gastronomia que possibilita uma conexão com o outro que vá além do romantismo de 'isso me lembra a minha avó'. Eu fico sempre intrigada qd essa reação aparece dentro do meu trabalho. Embora eu de fato parta de experiências pra poder falar de questões coletivas, eu nunca escrevo desse lugar (até pq esse tipo de afeto tá longe demais da minha experiência rs), mas ele sempre aparece do outro lado. Eu não sei até que ponto isso não diz de um condicionamento, das pessoas estarem muito acostumadas que a possibilidade de estar com outro é isso, já que muita gente trabalha essa associação. Fiquei aqui imaginando se mesmo nesses trabalhos que vão além que ele cita, se essa ideia não acaba sendo comum. E o outro é sobre PANC. Ao longo dos anos alterei a forma sobre como escrevo sobre esses ingredientes justamente pq foi me incomodando demais a fetichização e a facilidade de captura pelo sistema como um item raro - e portanto, caro -, o que é o oposto da ideia que se quer cultivar. Mas é curioso pq apesar de ter abolido a alguns anos o termo na minha escrita (e ter defendido publicamente o porquê disso), eu percebo tbm que tem uma dificuldade prática de se falar sobre esses itens autóctones sem cair na fetichização, já que as condições de onde eu falo na maioria das vezes são irrepetíveis pro público que me lê, e a internet condicionou a gente a estar ali só desejando produtos e experiêcias em vez de ser capaz de cultivar o olhar local pra própria (e irrepetível) abundância. Como não ser capturado pelo sistema: a velha questão que parece que não sai de moda rs. Muito obrigada por me apresentar o Guilherme Lobão
Impecável!