#8 | o pensar culinário
um rascunho sobre a compreensão da cozinha do dia a dia como uma construção epistemológica incidental
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[o atraso no envio desta edição se deve a duas coisas: ser brasileira e fevereiro ter apenas 28 dias]
para os Refosco, com carinho.
Por muito tempo, o único abacate que eu conhecia era o do tipo Fortuna. Ainda criança, eu sabia como preparar a fruta do jeito que eu gostava e que acreditava ser a única forma correta de comê-lo: cortado na metade, sem o caroço, com uma colher de sopa de açúcar e meio limão espremido por cima. Cavucando a polpa com a colher, transformava-a em um creme pedaçudo. Se houvesse um abacateiro por perto, era certo que eu comeria pelo menos dois inteiros desse jeito. Alguns anos depois, eu ouvi pela primeira vez que "o Brasil é o único país que come abacate com açúcar", e minhas certezas caíram de maduras.
O abacate não era insumo para vitamina ou sobremesa no resto do mundo. Ele aparece nas refeições principais, como o guacamole mexicano, a palta chilena, ou ainda em ceviche e saladas nos outros países latino-americanos e europeus. Por mais pueril que seja, identifico nessa informação uma das que ampliaram meu entendimento de comida e suas possibilidades.
A primeira vez em que comi abacate salgado foi também a primeira vez que comi coentro. Era um verão em São Paulo e eu estava visitando a Flora Refosco, minha amiga desde a pré-adolescência. Há 20 anos, nossas vidas têm intercalado entre a complementaridade e trajetos paralelos. Em certos aspectos, nossa história é uma versão menos desigual e sem as tragédias que marcam Lila e Lenu – inclusive, a aliteração em 'Flora e Flávia' é de uma coincidência digna de ficção.
Flora é práxis, eu sou teoria. Flora experimenta, eu deduzo. Flora amassa pão, eu compro pronto. Aos 18, Flora cozinhava o que não conhecia pelo prazer de aprender. Eu preferia ficar à margem, fantasiando que, se eu passasse bastante tempo a observar, poderia acertar de primeira. Naquela noite, Flora não fez apenas guacamole com coentro: fez também as tortilhas com farinhas de trigo e de milho. Eu devo ter arrumado a mesa.
Nossas personalidades complementares sempre funcionaram como um estímulo uma à outra, ou pelo menos assim eu gosto de pensar. Pela sorte de termos nos conhecido no início da adolescência, consigo ver em que solo ela cresceu. Com a família dela, eu comi arroz cateto pela primeira vez; temperei salada com pimenta-do-reino, girando um moedor de madeira; exagerei no gersal por cima do feijão; provei mignon alto feito na manteiga. Que jeito era aquele de cozinhar?, eu me perguntava, no início dos anos 2000, fascinada.
Apesar de mencionar a carne no parágrafo acima, na casa da Flora servia-se, essencialmente, comida vegetariana. Ninguém era vegetariano, não havia uma discussão sobre comer ou não animais. Não era proibido, mas era raro que houvesse. Ela cresceu em um ambiente em que se cozinhava olhando para as possibilidades de ingredientes vegetais e as transformações possíveis usando farinha e água. Sem um discurso presente – as coisas eram como eram.
Existia uma formação culinária – e aqui me refiro a algo aprendido de maneira inata, sem a sistematização de conhecimento técnico – diferente da minha e da que eu tinha visto ser reproduzida ao meu redor até então. Por ser uma família com tantas práticas diferentes das que eu conhecia, hoje consigo identificar possíveis influências que uma geração anterior à Flora mesclou antes de ela chegar ao mundo. O vegetarianismo, claro, ainda que indiretamente, e a cozinha macrobiótica. Mas este não é um ensaio sobre a gênese das diferentes cozinhas dos irmãos Refosco, e sim sobre o que me inquieta desde que os conheci.
Em dezembro do ano passado, escolhendo o que servir na ceia de natal, fiz um rascunho (que perdi) sobre o que chamei de o pensar culinário, um conjunto de verdades assumidas inconscientemente e de linhas de raciocínio que permeiam nosso entendimento sobre alimentação. Não é algo sempre evidente, tampouco é fácil separar o tempero pessoal do caldo cultural.
Esse pensar culinário é individual e resulta do aprendizado cotidiano dentro da família, sociedade e da busca de acordo com os interesses pessoais. Uma composição que se complexifica conforme o sujeito se depara com novas experiências e limitações. Diferentemente de uma sistematização, que organiza e reconhece os componentes do conhecimento, o pensar culinário é automático, desordenado e inconsciente.
Ele é composto pela repetição de gestos, pela combinação de ingredientes, pela escolha das técnicas de cocção e pelo que é entendido pelo sujeito como comida trivial. Ele não fala da comida racional, do trabalho dos chefs e cozinheiros de carreira, da gastronomia que ilustra revistas ou de guias de restaurantes – até porque todo esse universo deriva da culinária. Também não me refiro ao cozinheiro guardião de um saber, que reitera o significado de cada gesto da tradição ao repetir os preparos. Estou falando de como você, sem pensar muito, seleciona chuchus e cebolas no sacolão, o que você escolhe para fazer uma salada e que sequência de preparos você faz pela manhã.
Em Filosofia, a epistemologia é a área que investiga o conhecimento humano: o que é conhecimento e como se adquire esse conhecimento. Sendo todas as tradições culinárias e produções de comida o resultado de conhecimentos existentes – inclusive a ultraprocessada, produzida pela historicamente recente indústria alimentícia –, a variedade de pensamentos individuais que compõem o hegemônico e o contra-hegemônico é incalculável. O mesmo pode ser dito da convergência de soluções e ideias encontradas por diferentes grupos ao longo da História para os mesmos problemas: colher, selecionar, moer, fermentar; caçar, matar, escalpelar, assar.
Houve desenvolvimentos de técnicas similares paralelamente durante a evolução humana, e quando as aplicamos sobre uma linha do tempo, podemos ver que a troca de conhecimento e de ingredientes foi intensa a partir de uma facilitação do deslocamento físico (olá, caravelas e especiarias!) e que se acelerou por séculos até chegar aos zilhões de receitas disponíveis na internet, os marketplaces que vendem ingredientes e produtos importados, a facilidade com que se cruza uma fronteira levando um queijo.
Com tantas possibilidades de acesso, há uma falsa impressão de que, na atualidade, há pluralidade epistemológica na cozinha e que há espaço para todo tipo de comida. Porém, como em todo espaço cultural, há disputa, sobreposições, e construção de narrativas.
Durante o boom da panificação de fermentação lenta que se deu em meados de 2010, pães ao estilo italiano, francês e norte-americano passaram a fazer parte da oferta em Curitiba, não necessariamente desbancando um pão de centeio (como é o tradicional na região por causa da colonização alemã nos séculos 19 e 20). Esse pão de centeio já não era comercializado massivamente e, certamente o número de pessoas que o preparam de forma caseira deve diminuir ano a ano.
Eu moro em um estado do Sul do Brasil, muito distante da França em tudo: distância, clima, a maneira como a terra foi trabalhada e ocupada ao longo dos séculos, o tipo de conflito social que ocorre em nossas cidades e campos. Mas eu encontro um bom pain au chocolat para comer na minha cidade e sei mais das características que uma boa massa folhada deve ter do que as de um pão de centeio bem feito. Isso para comparar dois preparos comerciais, sem entrarmos na questão de conhecimento sobre cultura alimentar de outros povos, como os originários.
Fazer com que seu entendimento de mundo seja predominante é uma conquista cultural e acaba por pasteurizar e achatar a compreensão da comida de quem "perde" essa batalha. Já falei sobre epistemicídio e do olhar que se lança à comida do outro como se ela fosse inacabada. Pesquisando por um fichamento sobre ontologia e epistemologia (que sumiu) no meu computador, encontrei este trecho que mostra uma das ferramentas de disseminação e conquista da homogeneidade culinária: o marketing.
Os comportamentos alimentares nos países industrializados estão, hoje, mais baseados nas estratégias de marketing das empresas agroalimentares que na experiência racional ou nas práticas tradicionais (ABRAHAMSSON, 1979).
(...)
O convívio associado às refeições perdeu importância. Aumentou a diversidade dos tipos de adoções alimentares de acordo com os contextos (lugares, momentos, convívios...) e, como consequência, aumentou o leque de expectativas relativas às características qualitativas dos produtos alimentares (LAMBERT, 1997, p. 55)
Frequentemente eu penso nos produtos que hoje parecem ser básicos em uma despensa, mas que há 30 anos não eram sequer conhecidos. Pense no azeite de oliva e se alguém da sua família de fato comprava aquelas latinhas retangulares nos anos 1990. Peixes como salmão e atum, sementes como pistache, frutas como a pitaya: nada disso fazia parte do repertório do brasileiro médio há 30 anos, e nada disso foi rechaçado pelo consumidor por ser distinto do que ele estava acostumado.
Tudo o que é importado vira um padrão de qualidade almejado pela produção nacional, e tudo o que era trivial na cozinha virou (ainda mais) paisagem. Acontecimentos políticos e econômicos no Brasil facilitaram a entrada de produtos importados, escolhas políticas e abertura de linhas de crédito fomentaram a produção e cultivo de novos produtos, e fenômenos como a globalização transformaram as possibilidades na mesa do brasileiro. Nas últimas décadas, ziguezagueamos um pouco perdidos e deslumbrados entre as gôndolas de supermercado.
Quando eu comecei a cobrir gastronomia, entre 2012 e 2013, eu acreditava que estava tendo acesso ao conhecimento verdadeiro. Ao jeito certo de cozinhar de acordo com as tradições consagradas, como se a técnica de execução fosse a garantia de autenticidade de um prato. O que a experiência fez, felizmente, foi me fazer entrar em contato com muitas cozinhas, jeitos de cozinhar e de servir comida. Me fez notar que há muitos caminhos para chegar a um mesmo resultado, e como é quase impossível cravar a origem de qualquer prato.
Saí desse universo de restaurantes quando chegou a pandemia, e passei a pensar mais na comida feita dentro de casa, para a reprodução social. A cozinha do tédio. Tive de cozinhar com mais frequência, me virar com limitações de tempo e orçamento, tentar me surpreender de alguma maneira. Fui resgatar na memória o que já comi e gostei para exercitar a combinação de ingredientes em algum preparo que eu dominasse. Me desafiei a usar ingredientes que já tinham em casa e pareciam não combinar. Quando me encontro presa em um looping de refogados, agora eu penso: "Como a Flora prepararia isso?"
Este é um dos textos mais crus que publiquei aqui. É uma ideia inicial, questionável, ainda pouco amarrada. O que eu escrevo não é ciência, portanto a única coisa que espero é que a leitura deste ensaio levante questões por aí também sobre a formação do ser humano que cozinha, e que a gente avance na discussão da culinária e gastronomia entendendo-as como expressões multifatoriais da formação humana.
Obrigada a Eduardo Alves, doutorando em Filosofia na PUCRS, pelas conversas off the record sobre epistemologia e desacordo racional que me ajudaram indiretamente a formatar esse ensaio.
NOVIDADES DESAFIADORAS
Agora, com a oportunidade de discutir um currículo de pós-graduação em Gastronomia, pude ter uma discussão como a do ensaio acima ao montar ementas e disciplinas para três cursos.
Convidada pelo Renato Bedore, topei assumir a coordenação executiva de três cursos de pós-graduação em gastronomia na Universidade Positivo: Chef de Cuisine Nacional (370h), Chef de Cuisine Internacional (370h), Chef de Cuisine Nacional e Internacional (395h). Trabalhamos um currículo que reforça a questão histórica e material no desenvolvimento da alimentação e, por conseguinte, da gastronomia; acrescentamos uma disciplina para a compreensão de restrições e de tabus alimentares a partir de diferentes motivações e perspectivas (religiosa, sanitária, política, etc.) e, em cozinha brasileira, as disciplinas de cozinhas regionais foram substituídas por uma abordagem que leva em conta os biomas.
Bedore é o coordenador principal dos sete cursos de pós-graduação em gastronomia, e junto dele tem a Carolina Garofani em Chef Pâtissier (Confeitaria) (360h), Jorge Mariano em Chef Boulanger (Panificação) (365h), Patrícia Araújo em Gastronomia Funcional (360h) e Yuri Moita em Criação, Gestão e Consultoria em Serviços de Alimentação (360h). Os cursos são presenciais no campus Ecoville da Universidade Positivo e as matrículas estão abertas até abril, quando começam as aulas (mediante atingir o número mínimo de matriculados).
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