[entrevista: Tainá Marajoara] a gastronomia neoliberal e a tentativa de aniquilação da cultura alimentar
"Essa cozinha contemporânea faz parte do ápice do ultraliberalismo. A origem do ingrediente só é interessante se for para o marketing", aponta a cozinheira, produtora cultural e ativista
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Diferentes cosmogonias trazem a palavra como a responsável pela criação do mundo. Proferida por uma ou mais entidades, seu som é a gênese da humanidade e do universo: aparece como o Verbo na Bíblia católica e como uma conversa entre Tepeu e Gucumatz no Popol Vuh, o Livro dos Conselhos maia, para citar os exemplos que estão frescos em minha memória após a leitura de O Mundo da Escrita, de Martin Puchner.
Nas palavras divinas estão a expressão de um desejo, a enunciação de um decreto, a ordenação do mundo e a definição das coisas ao nomeá-las. A boca como o portal da criação também está no mito original egípcio em que Rá cospe seu filho Shu, deus do ar, e regurgita sua filha, Tefnut, deusa da umidade. Para nós, meros mortais, a palavra é continuidade – desde a função fática da comunicação à manutenção de tradições e transmissão de conhecimento nas culturas orais, ou na pretendida permanência dos registros escritos.
É pelo discurso – a articulação de todas as linguagens, alfabéticas ou não – que se encampam os maiores conflitos da história recente; basta pensar no poder que as narrativas oficiais históricas ainda têm de esconder e suavizar os crimes coloniais.
A boca gera, emite e cria; e também tritura, absorve e homogeniza.
Talvez eu goste tanto de entrevistas pelo peso que têm as palavras escritas e faladas; são a matéria-prima da entrevista. É até possível escrever uma reportagem apenas observando algo em silêncio, conferindo e cruzando informações a partir de pesquisas em base de dados, em fontes primárias, como documentos históricos, e referenciando trechos de publicações anteriores. A entrevista, não. A entrevista requer uma conversa em que um pergunta, questiona ou levanta um tema para que o outro desenvolva um raciocínio, responda uma dúvida ou analise o conjunto de dados e fatos. A dinâmica é a de receber e devolver, e é por isso que, no jargão jornalístico, o tipo de entrevista que publico nesta newsletter é chamada de ping-pong: porque ninguém consegue jogar sozinho.
Assim que entrevistei a Lourence Alves em agosto e a ouvi falar sobre questionar os cânones eurocêntricos e dialogar com autores fora da epistemologia branca e colonial, lembrei das falas da Tainá Marajoara, cujo trabalho acompanho desde 2015, após ler essa entrevista no finado blog e-Boca Livre do sociólogo Carlos Alberto Dória.
Estive no Ponto de Cultura Alimentar Iacitatá, em Belém do Pará, em 2019, quando tomei o café descolonial: café, suco do dia, bolo de cacau, beiju, pão de Abaeté com queijo do Marajó, pasta de jambu, doce de cupuaçu, ovo mexido, mingau e castanhas. Fiz uma série de fotos dessa mesa montada e gravei uma entrevista em vídeo com a cozinheira, produtora cultural e ativista, mas perdi todos os arquivos ao descarregá-los no computador da redação.
Aquela foi a minha primeira conversa com a Tainá, e será difícil de esquecê-la: ao pedir ajuda à ela para compor a descrição do queijo do Marajó, fiz uma comparação de sua textura com uma pasta cremosa de queijo muito popular no Brasil. Tainá me respondeu uma sonora negativa, seguida de um breve sermão. O estrago que fiz pelas palavras: na tentativa de facilitar o entendimento para o leitor, acabei desmerecendo o queijo do Marajó, sua história e o saber-fazer contido na sua produção.
A espontaneidade do improviso sempre revela nossa visão de mundo e nossas referências mais basais; no meu caso: sulista, branca e citadina, uma combinação de características lidas como "neutra" no mundo atual. É impossível que eu seja outra coisa que não esta combinação, mas a maneira como me coloco no mundo e faço uso do lugar que ocupo pode ser diferente. Eu poderia ter usado palavras melhores.
Pedi desculpas pela gafe e hoje uso essa historieta em aula como um exemplo do que não fazer. "Eu não me lembro dessa situação especificamente, mas sempre ouvimos várias comparações como essa, "ah, esse queijo é como uma muçarela", ou que a canhapira é "'uma feijoada", me disse Tainá em 6 de janeiro de 2022. "É um imperialismo alimentar, um não-esforço de ampliar o repertório", completou.
O Instituto Iacitatá foi criado em 2009 por Tainá Marajoara e Carlos Ruffeil, em Belém, mapeando ingredientes e preparos da Amazônia e estabelecendo uma cadeia curta entre produtores de alimentos e consumidores. Em 2014, o Ponto de Cultura Alimentar Iacitatá abriu as portas para o público no casarão antigo do bairro Cidade Velha, em que se pode tomar um café da manhã, almoçar, e comprar alimentos, ingredientes e utensílios produzidos por comunidades amazônicas e assentamentos do Movimento Sem Terra (MST). Há mais de uma década, ela constrói conhecimento junto dos seus, articula debates, propõe (com toda a potência do verbo propor) ações concretas, e se coloca no corpo a corpo da política institucional.
É mérito de Tainá que a cultura alimentar tenha sido incluída na Conferência Nacional de Cultura, em 2013, um entendimento institucional inédito que afirmou a cultura alimentar como uma expressão cultural brasileira; e que os espaços de base comunitária, agroecológica e de culturas originárias, tradicionais e populares fossem contempladas pela Lei Aldir Blanc, sancionada em 2020 (artigo oitavo, item XXIV), uma ação emergencial de auxílio ao setor cultural brasileiro.
"Ainda que a gente tenha um diálogo com o Núcleo de História Oral da Universidade de São Paulo, nós chegamos nesse conceito a partir da escuta com os antigos no Cachoeira do Arari, no Marajó. Eu fui ouvir o que nossos velhos tinham a dizer para fazer essa incidência acadêmica", diz. Tainá mantém o "moquém aceso" há anos, continuando o trabalho de resistência e luta de vários povos, ainda que muita gente tenha se deparado com algumas questões como soberania alimentar e alimentação como direitos humanos mais recentemente, com a guinada destrutiva do governo Bolsonaro.
Existe uma intenção muito clara no governo Bolsonaro de exterminar a multiplicidade de formas de viver e de expressões culturais – não que essa intenção não existisse antes. Mas estes estão sendo os piores anos da última década para promover o epistemicídio, ou seja, o apagamento das formas de entender e de estar no mundo que fogem do ideário ocidental neoliberal. "É mais que um apagamento, é aniquilação. É para não deixar rastro de sua forma de sobrevivência, nem de seu conhecimento", define Tainá.
Com a intensificação da agenda do agronegócio no congresso, 2021 foi o ano em vimos nos grandes jornais e portais notícias sobre a presença da líder indígena Txai Suruí na COP26 e o acampamento de povos indígenas em Brasília contra o marco temporal. Toda intensificação aumenta o contraste e parece que só assim, no fim da trilha, é que se permite ouvir o grito do lado atacado.
No início da pandemia causada pelo Sars-Cov-2, Ailton Krenak disse: "Somos índios, resistimos há 500 anos. Fico preocupado é se os brancos vão resistir". Imagino o quão cansativo é manter sua cultura viva por 500 anos quando todo o aparato institucional criado nesse intervalo de tempo trabalha para eliminar cada símbolo e cada centímetro de terra.
Tainá Marajoara conversou comigo por telefone por aproximadamente uma hora, quando provavelmente repetiu pela enésima vez o que ela e tantos outros ativistas de grupos minorizados na política institucional estão falando há séculos. Abaixo a transcrição de nossa entrevista, editada e organizada para sua melhor compreensão:
O Ponto de Cultura Alimentar Iacitatá é um exemplo na articulação de cadeia curta, que promove os alimentos da região para um público da região. Quais foram as transformações percebidas ao longo dos anos?
O primeiro avanço significativo é quanto à conscientização pela garantia de direito e abertura de mercados. Existia (e já foi pior, ainda existe) um preconceito da comida vinda da agricultura familiar. Existe um racismo na alimentação: "não vou comer comida de preto, de pobre, de índio". A cozinha necessita ser antirracista para ser de fato transformadora. Esse posicionamento interfere diretamente na prática de consumo. Também há coisas muito pejorativas que fazem parte desse conjunto de preconceito, como achar que é sujo, que não presta, que tem verme. A transformação desse consumidor a partir dessa consciência, que vem muitas vezes por ter alguém doente na família, abriu espaços de comércio e de comercialização. A gente vai abrindo espaços políticos a partir da consciência, políticas estruturantes para que essas populações tenham dignidade. Para que a gente possa rumar para o bem viver.
A discussão sobre soberania e cultura alimentar está diretamente ligada à questão da propriedade de terras, e o Brasil nunca teve uma política pública forte em demarcação de terras indígenas e demais reconhecimentos territoriais, como para quilombolas. Em relação à cultura alimentar, há um trabalho de registro de saberes pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), talvez a política pública com uma visão mais completa para manter tradições culturais, que inclui a noção de território. Na sua avaliação, temos como trabalhar com as políticas públicas que sobraram nesse governo ou estamos em situação de terra arrasada?
Existem as duas coisas. Existe terra arrasada com a destruição do Ministério da Cultura, do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), do Ministério de Desenvolvimento Social e do Ministério de Desenvolvimento Agrário e das políticas públicas de combate à fome. É uma realidade de terra arrasada. E junto com essa estrutura de governo, caem muitas políticas que, ainda que ruins, tinham algum significado, como era o caso de diálogos nacionais e internacionais sobre diversidade cultural. O Brasil saiu de grupos e discussões que criavam uma salvaguarda cultural e ambiental. Tem alguns métodos que promovem a salvaguarda, mas há também a criminalização de certos processos não reconhecidos pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que faz com que não possam ser salvaguardados. O entendimento do que é cultura alimentar e seu papel para o país e para o mundo precisa chegar ao momento contemporâneo. Precisa sair da cabeça subalternizada pelo colonialismo para poder chegar no tempo de agora, que é um mundo arrasado pelas mudanças climáticas e colapso ambiental.
Em Belém choveu granizo às 14h. O Pantanal pegou fogo. O Pará está batendo recorde mais uma vez de desmatamento e chegando a temperaturas muito altas. São Paulo escurecendo às 15h. E se fala de uma agenda de futuro. O futuro é uma invenção para protelar o que é para ser feito hoje.
Quando os povos indígenas plantam o bacuri, estão plantando agora para que outras gerações comam. Não é para 2030. É para agora. A necessidade de sobreviver é agora, para que se consiga manter a vida mais tarde.
Com a destruição das culturas alimentares, os povos passam fome. E isso é proposital. A fome gerada no campo e no meio da Amazônia é uma tática de destruição dos povos da Amazônia. A Amazônia representa o maior índice de insegurança alimentar do país. Como pode [um bioma] ter a maior biodiversidade e também o maior índice de insegurança alimentar?
São muitas camadas de colonialismo e de discriminação para continuar com práticas de dominação, uma desterritorialização do paladar. A inserção cada vez mais forte da industrialização tira de nós o gosto do alimento: as pessoas têm que sair das terras, do campo, para morar na cidade. É uma questão cultural e histórica que faz com que povos da Amazônia não sejam vistos como parte da história da humanidade, como se a história da humanidade sempre se encontrasse fora da Amazônia. Está sempre no Egito, na Europa, na Revolução Americana. Mas nunca o povo marajoara e sua cultura complexa e viva até hoje fazem parte da história da humanidade. É mais que um apagamento, é aniquilação. É para não deixar rastro de sua forma de sobrevivência, nem de seu conhecimento.
Uma de suas primeiras críticas que eu li foi em 2015, no blog do sociólogo Carlos Alberto Dória, sobre a apropriação de ingredientes que "grandes chefs" fazem ao usar um ingrediente e ignorar seu lugar de origem e seu contexto de uso. Existe algum jeito possível de esse mundo da gastronomia ser um parceiro da preservação da cultura alimentar ou é uma relação que sempre beneficiará o lado do chef?
O que eu coloco é que o ingrediente é visto como se não houvesse uma população atrás dele, como se ele aparecesse sozinho na mesa. É o resultado de uma cultura, de um conhecimento.
O ingrediente pode ser produzido aqui no Furo do Palheta, no Marajó, e ser consumido até pela rainha da Inglaterra. A questão é que a espetacularização é feita como se esse ingrediente existisse sem ninguém, como se a indústria produzisse ele do zero, sintetizasse. A cozinha contemporânea tem uma pauta muito forte no produto, no ingrediente, e essa cozinha contemporânea é parte do ápice do ultraliberalismo. É um expoente com seus chefs brancos, colonialistas e proprietários, que se veem como salvadores dos povos.
A apropriação cultural acontece neste outro mercado: o chef de cozinha quer falar que está usando um ingrediente amazônico falando de sustentabilidade e que é amigo da natureza. Essa é a parte que está errada. Se ele quiser só usar o ingrediente, por que ele usa o ingrediente e fala que está protegendo a minha cultura?
Para a cozinha contemporânea, a origem do ingrediente só é interessante enquanto ferramenta de marketing. Se não fosse interessante para o marketing, não se falaria da origem. Tem todo um processo de base cultural enraizada ao trazer um ingrediente: são outros afetos e percepções que compõem a produção desse alimento. Um ingrediente amazônico que você encontra aí no Sul ou Sudeste pode ser de uma terra grilada, por exemplo. Você não vê nenhum chef desses fazendo campanha contra o agrotóxico. Se lança livro sobre mandioca e ingredientes amazônicos, sobre ingrediente do Cerrado, mas onde é que está o discurso de que o agrotóxico está contaminando esse alimento e que esses alimentos estão rareando nos territórios? E se o produto está rareando é porque quem o produz está morrendo, está sendo contaminado. Os povos entendem aquele ingrediente não como um ingrediente de cozinha, mas como uma extensão do seu corpo, do seu afeto e do seu território.
Quem diz que isso [de unir gastronomia e cultura alimentar] é utopia, que somos nós que falamos de cultura alimentar em contraposição à gastronomia… Eu não só vejo isso acontecer [unir gastronomia e cultura alimentar], como eu faço isso no nosso ponto de cultura alimentar. E também acontece no Armazém do Campo do MST, as cozinhas da terra, os quilombolas que estão tomando seu espaço. As próprias cozinhas indígenas. Ficamos felizes de ter acendido esse moquém e de este debate estar acontecendo em vários pontos do país.
Mas há uma intersecção saudável que seja possível entre esse mundo da "alta cozinha" e a valorização da cultura alimentar?
Começa pelo termo "alta cozinha". Até quando vamos considerar alta cozinha um ambiente que tem precarização de trabalho, uso de alimentos, desperdício, ingredientes de terra grilada? Não existe alta cozinha quando pessoas têm que morrer e serem escravas para que o outro coma. Isso é imperialismo gastronômico, colonial e contemporâneo. Está dentro das universidades, dos cursos técnicos, em discursos que falam da evolução das cozinhas. Não é possível chamar de alta cozinha o que se faz em um lugar em que as pessoas são subalternizadas para que o outro coma. De 1500 até hoje estamos falando de um processo de expropriação. Essa intersecção [entre cultura alimentar e alta cozinha] acontece em alguns momentos, em alguns projetos, mas além de focar na alta cozinha, é um discurso construído para subalternizar esses povos. Enquanto a "comida do futuro" tá aí prevendo insetos para alimentar as pessoas, a gente está falando "pare de jogar agrotóxico porque a gente quer continuar comendo nossa comida". Os bancos genéticos estão privatizando sementes de plantas e jogando [o uso de agrotóxico] para o terceiro mundo.
Em plena Amazônia não se têm políticas públicas para consumo de produtos locais e se distribui cesta básica com ingredientes processados. Temos a maior concentração de oleaginosas, frutas, hortaliças e crianças ficando doentes, desnutridas. É preciso dar protagonismo aos povos, sem necessidade de uma mão branca mostrando que está "salvando a Amazônia".
A frase "comer é um ato político" está aparecendo em cada vez mais lugares, mas o que vejo é que muitas vezes é apenas usada como frase de efeito, sem uma ação ou proposta clara. Como você tem percebido isso?
Vejo que há tanto a banalização [da frase] quanto a descoberta de que comer é um ato político. De um lado, a banalização e apropriação desse termo, como foi feito pela indústria com o conceito de "comida de verdade'', até por aqueles que chegaram a ameaçar o conceito de cultura alimentar. Quando você vê esses conceitos na boca da indústria e de chefs que são garotos-propaganda do agronegócio, significa que esses conceitos também fazem sentido para a comercialização de produtos.
Por outro lado, a gente percebe em muita gente uma vontade de se aliançar com povos indígenas, uma vontade muito forte de estar apoiando os Movimentos Sem Terra, de entender a questão climática e o colapso do planeta. Já chegamos no ponto de não renovação dos recursos naturais há muito tempo. A intensificação desse colapso também se dá pelas escolhas de consumo. Por um lado, é extremamente necessário o entendimento de que são as terras indígenas que ainda garantem ar e umidade onde elas existem. Se não fossem essas terras, tudo seria deserto e [haveria] seca.
Sabemos que não é apenas o individual e sim as estratégias econômicas e de comércio impostas pelas grandes corporações as responsáveis pelo colapso do planeta. Cidades ficam sem água enquanto os latifúndios consomem a maior parte da água potável. Não é apenas fechar a torneira para salvar o planeta. É uma conjuntura política e econômica que está aí fazendo pressão através de lobby.
Você é uma das pessoas que sempre esteve um passo à frente no debate e nas colocações que faz ao discutir cultura alimentar e gastronomia. Sinto que muita gente está começando a falar hoje o que você tem pontuado há mais de dez anos. Quem são seus interlocutores?
Eu troco com quem constrói conhecimento e discute a realidade: são os povos indígenas, a genialidade de Naine Terena, Eliane Potiguara, Daniel Munduruku, Ailton Krenak, Márcia Mura. Troco com os advogados e procuradores, com a promotoria de direitos humanos. Com o Movimento Sem Terra, com outros cozinheiros, com Thiago Vinicius, da Agência Popular Solano Trindade, com Eliane Moreira, promotora socioambiental aqui do Pará. Com os profissionais da Associação Brasileira de Agroecologia, com Antônio Nego Bispo.
Precisamos descolonizar também nossas referências. É preciso uma transformação radical nas estruturas de poder, de construção de pensamento e de espaços para que a gente possa atuar. Não dá para falar de cultura alimentar e permanecer nessa trilha gastronômica. Se estou falando de cultura alimentar, então cultura é diversidade. É a partir da diversidade que se chega a conceitos, formulações, e é o que vai incidir diretamente na transformação e na construção de políticas públicas.
Chega de conhecimento que veio nas caravelas. A gente precisa dos sopros, do repertório das florestas.
MAIS PALAVRAS
Não há como estudar qualquer gênero de texto no Brasil sem considerar o rap nacional, e o álbum Roteiro para Aïnouz (vol. 2), lançado em novembro de 2021 pelo rapper Don L, é uma epopeia digna de repeat – se fosse mídia física, eu já teria "furado o disco".
Don L imagina uma revolução popular comunista e ao longo das 17 faixas reconta a história brasileira, a reação às injustiças, a tomada do Estado e dos meios de produção, do período colonial até a contemporaneidade. É um primor narrativo. São tantas camadas – identidade, desigualdade social, expressões religiosas, capitalismo, auto-estima, reforma agrária, segurança pública… e esperança – que ainda estou no processo de digeri-lo. Três trechos merecem a atenção do leitor desta newsletter:
Em primavera:
As tecnologias ancestrais nós temos
Pra induzir o sonho dentro de um pesadelo
Entre um traçante e outro
Dilatar o tempo e imaginar um mundo novo
Em pela boca:
Que se foda seus dólares na bolsa
Suas empresas agora são do povo
Suas terras são floresta de novo
Suas mansões, escolas, seus soldados mortos pelos nossos
Quero ver cê falar com o gogó na forca agora
Em favela venceu/rap das armas:
Ladrão foi Colombo, é tudo nosso
A gente merece, a gente banca
Nós pega a visão, eles propaganda
Se quem te alimenta te controla
Ninguém quer esmola, a gente planta
Sem mais.
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