menos venlafaxina no corpo, mais louça na pia
a última edição do ano vem curta, levemente melancólica e com a prévia de dois temas para futuros textos
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Fiz deste dezembro um mês atípico propositalmente. Menor que fevereiro em dias úteis e em eficiência coletiva, dezembro acentua a minha ansiedade a ponto de, já há alguns anos, ser o mês em que eu preciso dobrar a dose de antidepressivo para conseguir manter um mínimo equilíbrio emocional. Desta vez quis mudar outra parte da equação e peguei menos trabalho para diminuir a quantidade de prazos apertados que sempre se acumulam na primeira quinzena de dezembro. Tive de abrir mão de muitas coisas, mas, pela primeira vez em seis anos, não precisei aumentar a dose de antidepressivo.
Em novembro, eu havia dito que gostaria de passar menos tempo no computador, e assim o fiz. Ocupei minhas mãos com algo concreto: descascar e picar legumes; cortar e temperar carne; lavar, porcionar e rasgar folhas. Por consequência do tempo livre, cozinhei muito mais que nos meses anteriores e dividi com o meu irmão, que também é meu vizinho, as porções extras. Por quase duas semanas, preparei marmitas para ele levar ao trabalho e entrei em um looping de razões para-esquecer-do-computador-por-um-tempo. Funcionou. Fiz molho de brócolis com bacon e béchamel para macarrão; bife acebolado com batatas levemente crocantes e apimentadas; bisteca com arroz de louro e cenoura; panquecas de frango; arroz cremoso de frango desfiado com milho, e mais coisas que já me esqueci.
Me senti novamente com a disposição e a curiosidade da adolescência, quando errar receitas era algo muito corriqueiro (e comer mesmo assim, também). Mais de uma década depois, a quantidade de erros diminuiu e logro êxito em primeiras execuções. Em dezembro de 2021, cozinhar voltou a ser uma atividade energética, da qual saio mais animada e tranquila. Menos venlafaxina no corpo, mais louça na pia.
Senti coragem para voltar ao blog que me inspirou nos primeiros passos na cozinha para além do dia a dia – ainda que eu mal tivesse acesso a limão siciliano em 2008 e achasse obsceno usar tanta manteiga em uma receita –, o Technicolor Kitchen, da Patrícia Scarpin. O TK, apresentado a mim pela minha amiga de toda vida, Flora Refosco, foi o primeiro blog cujas fotos me causaram impacto, e a maneira como a Pat detalha o modo de preparo e a escolha de combinação de sabores me ensinou mais do que eu conseguiria mensurar.
Nas últimas semanas, duas receitas da Pat foram levemente adaptadas por mim e já foram repetidas algumas vezes: o bolo de pera, azeite e chocolate (no qual ignorei as peras, acrescentei cacau à massa e coloquei chocolate branco picado como cobertura; e, em outra versão, troquei o azeite de oliva por um óleo vegetal mais neutro, acrescentei garam masala à massa e usei maçãs em cubinho no lugar de pera, retirando o cacau e o chocolate), e o brownie de manteiga queimada, no qual usei um mix de oleaginosas em vez de apenas pecan, e igualmente cobri a massa com chocolate branco antes de assar.
Cozinhar é uma atividade que me interessa por diferentes aspectos, como é fácil notar pelo que tenho feito publicamente da minha vida nos últimos anos. Ter voltado ao meu início – os sentimentos em relação à atividade e à uma das minhas grandes referências culinárias – me fez refletir sobre o pensar culinário.
Comecei um esboço, no qual elenquei tópicos como o ponto de partida para pensar uma refeição (o corte de carne? o tipo de amiláceo? o ponto de cocção dos legumes?); como selecionamos alimentos a partir das nossas preferências e repertório de preparo (e como isto pode se formar e se reconstruir ao longo da vida conforme somos expostos a novas práticas); e como tudo isso se modifica com o tempo por questões externas (a disponibilidade de ingredientes, por exemplo) e internas (como o domínio de uma técnica). Pretendo conversar com algumas pessoas antes de finalizar o rascunho, e publicar em uma das edições desta newsletter no primeiro trimestre de 2022.
A atipicidade de dezembro também se deu pela ceia de natal, que este ano foi na minha casa. Fiz um cronograma de quatro dias para me guiar nas compras e preparos e assegurar que no dia 24 só precisasse fazer o arroz e assar a carne. Assim, tivemos uma pequena tábua de queijos, frutas e castanhas; um arroz festivo que servisse bem às duas alas da família (aos que comem de tudo, um mix com salsinha, amêndoa tostada e casca de limão siciliano para incrementar o arroz branco); uma volumosa farofa com cebola, cenoura e alecrim, preparada com muita manteiga; uma salada de folhas, tomates e palmito com fatias de maçã gala assadas com um pouco de manteiga e açúcar; duas opções de molho para a salada (mostarda e mel; e shoyu com gengibre e alho); e uma sobremesa (o brownie de manteiga queimada que linkei acima, uma geleia de morango feita por mim e sorvete comprado pronto).
Meus pais trouxeram a carne: um pernil previamente temperado com alho e cebola em pó de um açougue de Corupá, pequeno município de Santa Catarina a poucos quilômetros da minha cidade natal. Ao pernil, adicionei louro e alecrim fresco, o sumo de um limão siciliano, azeite, batatas e cenoura. Rendeu duas refeições e ainda uma marmita para o meu irmão.
Escolher o cardápio, executá-lo sem aflições e ouvir os elogios dos meus pais e do meu irmão me deixou positivamente surpresa. Não fiz escolhas ousadas – pelo contrário: caminhei muito próximo do básico –, mas também não esperava que fossem repetir os pratos com tanto entusiasmo. Diferentemente da curiosidade, qualidade que me acompanha há décadas, a satisfação de servir me era desconhecida nesta magnitude.
A bem da verdade, nunca me vi desempenhando exemplarmente este papel de anfitriã. Preparar esta refeição impregnada de significados e memórias foi um rito de passagem, e receber minha família para compartilhá-la foi, sem dúvidas, uma das experiências poderosas deste ano.
Entre os preparos, rascunhei uma série de anotações sobre ser anfitrião, que pretendo escrever nos próximos meses depois de conversar com gente muito mais espontânea e experiente em receber do que eu. A ver se consigo captar a complexidade da coisa toda.
Tudo isso para dizer que não há ensaio neste dia 31 de dezembro – menos por causa do tempo disponível (que poderia ser alocado para escrever mais para a newsletter, mas não foi – quem teria tempo de ler tanta coisa?), e mais pela angústia que sempre me assombra nesse mês quente de finalizações de trabalho e início do verão. Afinal, este dezembro, apesar de atípico, continua inevitável.
NOS VEMOS (LITERALMENTE) EM JANEIRO
Os apoiadores da newsletter começam o ano com um encontro marcado… virtualmente.
Na quarta-feira, 26 de janeiro, às 19h, faremos uma videochamada para nos conhecermos e comentarmos alguns temas já tratados nos ensaios e entrevistas da fogo baixo. A ideia para este primeiro encontro é entender o que interessa e intriga cada um de vocês, e também do que discordam ou o que gostariam de pontuar.
Os convites para esse encontro serão enviados no dia 20 de janeiro para os apoiadores do plano mensal (R$ 10) ou anual (R$ 100). Quem apoiou durante 2021 ou quiser começar a apoiar a partir de janeiro de 2022 também receberá o convite para participar da videochamada.
Se você está vendo esta edição pela página na Substack e não em sua caixa de entrada, não conseguirá ler os agradecimentos públicos que são publicados no rodapé de cada edição. Copio-os aqui:
Agradeço a Antônio Senkovski, Cristal Muniz, Fernanda Farias, João Frey, Jo Bulla, Jussara Voss, Kate McDermott, Laura Mingoti, Mariana Ceccon, Murilo Bomfim e Pat Willard pelo apoio.
A fogo baixo é uma newsletter feita pela jornalista Flávia Schiochet, traduzida por Luciane Maesp e ilustrada por Marina Kinas. Todos os ensaios, entrevistas e edições extras estarão sempre disponíveis gratuitamente e você pode ler (ou reler) acessando o arquivo da newsletter. Ajude a espalhar a palavra: