#13 | o paradoxo da falta de mão de obra no setor de restaurantes
precisa-se de funcionário em restaurante, e sobra CNPJ de cozinheiro no Brasil. por que a equação não se resolve? melhores condições de trabalho e de remuneração são os principais pontos
Esta reportagem foi produzida durante setembro para a edição especial da revista Tutano de 2022, publicada em novembro. Abaixo, com o título e gravata originais e a versão estendida da reportagem. A revista é distribuída gratuitamente em restaurantes de Curitiba e São Paulo (confira a lista ao final deste post no Instagram da Tutano) e também está disponível em pdf (da página 16 a 18).
O CABO DE GUERRA CRÔNICO DA RESTAURAÇÃO
De um lado falta mão de obra, de outro sobra a precarização do emprego. Nesse puxa-puxa, perdem todos: patrões, funcionários e consumidores. Para solucionar esse problema, é melhor largar a corda e procurar uma balança
Os dez reais que um freelancer de restaurante recebia por hora em 2012 comprava pouco mais de meio quilo de coxão mole. Atualmente, a mesma nota consegue levar para casa dois bifes desse corte – algo em torno de 200 gramas. Taxa, no jargão da profissão, significa o trabalho temporário e sem vínculos que um cozinheiro ou garçom faz, às vezes uma única vez, às vezes por um período de meses. O valor da hora desses profissionais em Curitiba pouco mudou na última década – varia de R$ 10 a R$ 15. Ainda assim, é essa modalidade de trabalho a que muitos cozinheiros preferem em vez de ter sua carteira assinada.
O piso salarial do cozinheiro no Brasil [em setembro de 2022] é um pouco acima do salário mínimo, atualmente de R$ 1.212. Em Curitiba, o piso é de R$ 1.585. Na hierarquia da cozinha, quem recebe esse valor costuma ser um auxiliar ou iniciante na área. Chefs de seção e cozinheiros com mais experiência recebem entre R$ 2,5 mil e R$ 3,5 mil por mês.
Em uma jornada de oito horas mais as duas horas do "fecha", a diária do taxa rende de R$ 100 a R$ 150. Um trabalhador que ganha R$ 2 mil em CLT, trabalha oito horas diárias, seis dias por semana, recebe cerca de R$ 84 por dia. O desconto do INSS e o depósito no FGTS, valores que não resolvem o mês, são uma pequena segurança para o futuro. A diferença é que o taxa tem mais dinheiro em mãos imediatamente e pode organizar a sua semana com um período de descanso maior antes da próxima empreitada.
Por oito anos, José Lucas dos Reis Silva, egresso do curso de História e com seis anos de serviço no Exército, trabalhou como cozinheiro. De restaurantes pequenos a salões que serviam 100 pessoas simultaneamente, ele teve apenas um período de trabalho fixo com um salário que bastava para o seu custo de vida. Foi em 2017, quando recebia de R$ 2,5 mil a R$ 3 mil como chef de cozinha. "Depois de um tempo, tive um estúdio e fiz produção de shows. Aí eu complementava a renda fazendo taxas quando precisava e produzindo salgados e pizzas veganas para vender para estabelecimentos", recorda.
Demissões e desemprego
A queixa é crônica no setor: não houve um período em que não se soubesse da procura urgente por funcionários para bares e restaurantes. Faltou mão de obra inclusive na retomada da vida social após o período crítico da pandemia, em 2021, quando a taxa de desemprego estava em 12,6%. No segundo semestre daquele ano, o ramo começou a se recuperar do baque econômico e voltou a contratar.
Em junho de 2022, a Associação Brasileira de Bares e Restaurantes – Abrasel, informou que 1 milhão de novas vagas haviam sido abertas no acumulado dos últimos 12 meses, quase o mesmo número de postos de trabalho perdidos por causa da pandemia, de aproximadamente 1,2 milhão.
Ainda assim, quando há candidatos, a dificuldade de contratação se dá por outras questões. A primeira é a de disponibilidade para trabalhar fixo. A segunda é a da falta de qualificação. "Essas são reclamações permanentes, mas é uma característica do setor no mundo todo. O setor absorve muita mão de obra jovem e o jovem quer experimentar", analisa Paulo Solmucci, presidente executivo da Abrasel. "E desemprego alto não significa que essas pessoas sejam qualificadas para o setor", completa.
As demissões da pandemia bifurcaram o caminho dos trabalhadores. Houve quem abriu um CNPJ – 80% do setor atualmente é composto de pequenos negócios, com até R$ 20 mil de faturamento mensal – e houve quem migrou de área.
"Às vezes nem é questão de o salário ser maior, mas o comércio e a indústria terão outros benefícios e rotinas que serão menos pesadas. O trabalhador começa a colocar na balança noites e fins de semana com a família e com os amigos", reflete José Petri, diretor-presidente do Sindicato dos Trabalhadores no Comércio Hoteleiro, Meios de Hospedagem e Gastronomia de Curitiba e Região – Sindehotéis.
A relação entre empregador e empregado é comumente vista como um cabo de guerra: ganha quem puxar mais. Na avaliação de Maurício Mulinari, economista do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), só puxar não resolve a questão estrutural. "Via de regra, no setor de serviços básicos de baixa complexidade, como alimentação, o que comanda é a precariedade do trabalho, com salários baixos e contratos temporários. Quando o desemprego está alto, a preocupação com condições de trabalho é minimizada pelo trabalhador, que tem urgência em conseguir pagar as contas", afirma.
Não ter o compromisso de 44 horas semanais em um único lugar, então, é a estratégia de muitos trabalhadores para fechar seus meses com saldo positivo em tempo e, talvez, em dinheiro.
Poder de compra esfarelado
Na avaliação de empresários, a reforma trabalhista de 2017 facilitou a contratação de mão de obra, tornando a folha de pagamento menos custosa e dando ao trabalhador a possibilidade de flexibilidade nos horários. As novas configurações, no entanto, não estão fazendo com que o trabalhador aceite esse tipo de contratação.
"Há muitas irregularidades no setor, como não repassar os 10% de gorjeta, não garantir folgas mínimas e não pagar horas extras", enumera Kelem Rosso, doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), que estuda as relações de trabalho em restaurantes. A inflação do último ano tornou mais urgente a constante procura por melhores oportunidades. A falta de benefícios oferecidos pelos empregadores também dissuade muita gente de enfrentar jornadas com poucas folgas.
Chico Urban, sócio-proprietário das três casas do cinquentenário Grupo Victor, está à frente dos negócios há 23 anos. Desde a retomada, a rotatividade nas suas casas está em uma média de um funcionário saindo a cada dois meses. O grupo emprega cerca de 85 pessoas e fecha as casas às segundas-feiras para que toda a equipe folgue no mesmo dia. "É importante desenhar bem a função e ter benefícios para os funcionários, de forma que o seu estabelecimento seja melhor visto do que o dos seus concorrentes. Isso vai desde plano de saúde e plano odontológico até vale-combustível para quem tem carro. Vale-alimentação nós trabalhamos a partir da assiduidade do funcionário", explica o empresário.
Metas para gratificações pontuais são outra estratégia para manter a equipe motivada e coesa. "Dar participação nas vendas a partir de alguns objetivos para a equipe, como um limite de quebra de copos e taças, também pode funcionar. A verba que não for usada para repor essa louça é distribuída entre os funcionários", exemplifica. Outras metas podem ter relação com a perda de ingredientes, desperdício de alimentos e aumento na venda de sobremesas. "E bons treinamentos em vinho e ingredientes, conhecimento que eles vão carregar para sempre", completa.
Talvez pela remuneração, talvez pela rotatividade inerente ao setor, trabalhar em restaurante é visto como um bico. Alguns irão dobrar turno, trabalhando em mais de um restaurante por dia, outros vão espaçar as jornadas de trabalho temporárias para procurarem outros empregos, muitos irão empreender para complementar a renda ou para ter tempo de cuidar de coisas que não conseguem mais terceirizar, como a sua alimentação e a limpeza da própria casa.
Em um setor que opera com margem de lucro entre 10% e 20%, e cujos custos fixos são muitas vezes imprevisíveis, a remuneração dos funcionários é o maior valor na ponta do lápis, ainda que o reajuste salarial seja uma vez ao ano. "Nos últimos sete anos, os reajustes não conseguiram compensar a inflação. É como se o salário subisse de escada e os preços das mercadorias e energia elétrica, de elevador", compara Mulinari. Estudos do DIEESE (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socio- econômicos) apontam que o custo da força de trabalho é de 27% a 30% do salário pago, e não "quase 100%", como alega o senso comum.
"Há que se mudar um pouco a mentalidade de que o lucro do setor gastronômico só pode ser auferido por baixa remuneração do trabalho. O valor de aluguel cresceu de 30% a 40% só nos últimos dois anos. Poderia ter um congelamento desses valores para os empresários."
– Mauricio Mulinari, economista do DIEESE.
Para muitos empregadores, subir a remuneração seria diminuir ainda mais o curto capital de giro do qual dispõem. "[Em um restaurante,] todas as funções dependem uma da outra. Você quer que todo mundo receba um salário melhor ou pelo menos quer dar uma gratificação em um mês que foi melhor de vendas, mas tem vários custos variáveis que você precisa equilibrar e que inibem isso. Você não sabe se esse dinheiro não vai faltar no próximo mês", relata Olivia Brenner Guimarães, sócia do Officina Restô Bar e do Miuq, casas em Curitiba que empregam 20 pessoas no total.
Em Curitiba, as equipes do Officina Restô Bar e do Miuq são compostas majoritariamente de jovens, e lideradas pela dupla Vitor Verona e Felipe Machosky, com menos de 30 anos. Nos seus oito anos, o Officina granjeou prêmios e tem sido destaque nos principais guias da cidade. "A rotatividade faz parte. Tem gente que está testando para ver onde se encaixa e tem quem ingressa na profissão motivado pela ideia de ser um 'masterchef ', e se desencanta", comenta Olivia.
Além desses perfis, a demografia da cozinha é composta de pessoas com backgrounds diferentes que trabalham lado a lado. E, entre algumas, há pouca diferença nos holerites. "As pessoas na louça e limpeza estão ali por necessidade. Entre os auxiliares de cozinha, tem o jovem com ambição e tem a pessoa com mais experiência, que acabou nesse ramo por ter trabalhado em fast food ou em barraca de cachorro-quente", observa José Lucas. "Tem os que fizeram curso e querem ser chefs de cozinha – esses geralmente saem nos primeiros três anos e, se puderem, abrem um negócio próprio. E tem aqueles que rendem por duas pessoas e estão há anos no mesmo lugar porque galgaram até conseguir uma remuneração maior, não necessariamente porque tinham o sonho de trabalhar em cozinha", completa.
São os mais jovens os que têm disposição para passar o expediente todo de pé, em um ambiente que pode chegar a 50 graus C, geralmente em espaço reduzido, com fornos ligados na altura do joelho ou ombros e a roupa colada no corpo pelo suor.
Sem um calçado adequado (nem sempre os estabelecimentos oferecem EPI aos funcionários), as pernas e costas doem mais ao final do dia. "Há oferta de trabalho fixo, mas não há vantagens em se estar fixo", resume José Lucas.
Plataformização e empreendedorismo
A discussão frequente entre os empregadores é sobre legislação trabalhista. Subsídios para fomento desse setor em que trabalham mais de 6 milhões de pessoas no Brasil, tais como isenção fiscal, menores juros, descontos em taxas de luz, água, gás, valor de aluguéis menores, e garantias sociais para que os trabalhadores tenham qualidade de vida mesmo recebendo um salário menor que R$ 2 mil são pouco trazidos à baila.
"O piso salarial, sem aumento real há anos e diante do aumento de custo de vida, faz o trabalhador [do setor de gastronomia] pensar que não tem mais nada a perder"
– Kelem Rosso, socióloga.
A área tem visto o número de MEIs aumentar e os "contratos" serem firmados entre dois CNPJs, o que não era possível antes da reforma trabalhista. "Essa pejotização é vendida como uma relação entre empreendedores e mascara a relação de patrão e empregado. Continua existindo uma subordinação. Quem decide quantas horas vai fazer e qual a intensidade do trabalho continua sendo quem contrata", frisa Rosso. Do outro lado, a Abrasel está otimista com as possibilidades inauguradas pela reforma trabalhista. "Em trabalho intermitente o profissional chega a ter de 60% a 70% a mais de dinheiro na mão. Pode não estar ocupado o mês todo, mas, quando está, ganha muito mais", diz Solmucci. "Pelo menos assim ele tem uma formalização e deixa de ser um bico", completa.
De olho na intermediação entre restaurantes e freelancers, há pouco mais de um ano, Guilherme Ferreira lançou a plataforma Alfred, que atualmente opera apenas em Curitiba. Com 600 profissionais cadastrados e 38 restaurantes [em setembro de 2022], o aplicativo ainda não é monetizado e funciona como mais um canal para publicação de ofertas e procura de trabalhos temporários. "É para eventos, folguistas e taxas de fim de semana", elenca Ferreira, que não descarta que o app se transforme em uma espécie de classificados para o setor e que o modelo seja expandido para outros mercados.
Nos últimos dois anos, das 520 mil novas empresas abertas no setor de alimentos e bebidas, 85% eram MEIs. Esse empreendedorismo emergente é classificado como de necessidade, ou seja, quando é motivado pelo desemprego, más condições de trabalho ou renda insuficiente.
Antes mesmo da pandemia, o fenômeno da pejotização já era visto no setor. Há quatro anos, a confeiteira Ana Souza, de 33 anos, mantém um CNPJ para vender os seus produtos, o Ana Souza Culinária. Ela é famosa pelo pudim de leite vendido em pote de vidro, e, em 2022, a sua marca figurou entre os doces mais votados pelo público no Prêmio Bom Gourmet, em Curitiba.
A mudança de Ana Souza de pessoa física para jurídica se deu porque as propostas de remuneração para trabalho fixo não valiam a pena. "Eu teria que fazer jornada dupla", conta. Ela mora com a família e começou a produção em casa. Hoje, compartilha um espaço de produção com outros cozinheiros MEIs que dividem os seus dias entre fazer taxa e tocar uma marca – cozinhando, planejando, fazendo marketing e vendas por conta própria. No momento, Ana enfrenta dificuldades para conseguir taxas e ampliar os pontos de venda dos seus pudins, manjares, caponatas e empadões.
"Quem consegue fazer taxa 'fixo' em vários lugares se mantém [financeiramente], porque recebe mais por hora, e aí decide se quer contratar um plano de saúde", exemplifica Ana. "No CLT, o salário é mais baixo, mas você tem o respaldo de ter o seguro desemprego depois", sopesa. Aceitar ou não um cargo que pode ser importante no currículo é o dilema de outros cozinheiros com experiência, porque o salário não cobre o pagamento das contas básicas do mês.
Os trabalhadores da cozinha não são os únicos. O Datafolha divulgou em junho de 2022 que 63% dos brasileiros não conseguem quitar as suas contas mensais com o que recebem. Segundo Pesquisa Nacional de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic), publicada no mesmo mês, 77,3% das famílias brasileiras estavam endividadas, sendo cartão de crédito, carnês e financiamento de carro os principais débitos.
É como se o juiz fizesse uma pausa para trocar a corda por uma mais fina e áspera. Ninguém vai aguentar puxá-la por muito tempo, e a vitória se dará por W.O.
Trabalho em cozinhas há 15 anos, 12 dos quais se deram em Fortaleza. É desestimulante, pra dizer o mínimo, investir 4 anos em formação e outros tantos em experiência real nas melhores casas da cidade para receber propostas de salário mínimo.
Enquanto isso, a reclamação de falta de qualificação da mão de obra é uma constante, e gostaria de ver alguém averiguar isso com dados em vez de apenas transcrever a desculpa #1 do patronato para pagar mal. O que mais vejo são colegas capacitados e experientes fazendo diárias de R$80 porque é o que há. Enquanto isso, patrões que pagam salário mínimo e mais nada vêm a público dizer que esperam profissionais que tenham passado pela Cordon Bleu ou tido experiência profissional no exterior - ambos casos reais, que eu mesmo vivenciei.