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Trabalho em cozinhas há 15 anos, 12 dos quais se deram em Fortaleza. É desestimulante, pra dizer o mínimo, investir 4 anos em formação e outros tantos em experiência real nas melhores casas da cidade para receber propostas de salário mínimo.

Enquanto isso, a reclamação de falta de qualificação da mão de obra é uma constante, e gostaria de ver alguém averiguar isso com dados em vez de apenas transcrever a desculpa #1 do patronato para pagar mal. O que mais vejo são colegas capacitados e experientes fazendo diárias de R$80 porque é o que há. Enquanto isso, patrões que pagam salário mínimo e mais nada vêm a público dizer que esperam profissionais que tenham passado pela Cordon Bleu ou tido experiência profissional no exterior - ambos casos reais, que eu mesmo vivenciei.

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Oi, Adnilson, obrigada pelo seu comentário!

O que você menciona sobre a desvalorização é o que muita gente com experiência – algumas das quais eu inseri na reportagem – me relatou aqui em Curitiba também. De fato, é um setor que tem os mesmos vícios em todas as regiões do país.

Quanto a acesso a dados sobre qualificação de mão de obra no setor, não há uma base de dados ou maneira de obter essa informação, por isso optei pela variedade de fontes para trazer vários ângulos: uma socióloga do trabalho especializada em restaurante, um economista do Dieese, o presidente do sindicato, dois trabalhadores, dois empresários.

Ainda sobre qualificação: mesmo que a pessoa tenha se formado em um bom curso profissionalizante, sem prática ela não está capacitada para trabalhar em muitos lugares. Além, claro, de depender do perfil dela: muitos egressos de cursos de gastronomia têm pretensão de ser chef-personalidade, como duas fontes mencionam. Aí é outra realidade, não tem a ver com o foco da matéria.

Acredito que consegui evidenciar nesta reportagem que as regras do jogo são muito mal formuladas. O lado que tem poder de decisão, que é o patronato, está muito preocupado em diminuir custos – ou seja, operando na noção preto no branco em vez de considerar a zona cinzenta. E é irônico: a casa pode ter uma matéria-prima excelente em mãos, mas vai continuar pagando muito mal os trabalhadores, porque é um setor muito sensível a todo tipo de instabilidade, com estoque perecível, dependente de incentivos à cadeia de produção e de distribuição que atendem prioritariamente o agronegócio e não à alimentação, com muitos custos fixos variáveis e que não pensa a longo prazo, nem preza por bem-estar social.

José Lucas e Ana, os dois personagens da reportagem, ilustram dois casos que são comuns. Ele aprendeu na prática e trabalhou em restaurantes mais "dia a dia" (e até chegou a ter um salário razoável por um período como chef), enquanto ela acabou indo estudar depois de trabalhar na área por um período. Ela obteve reconhecimento público pelo trabalho, apesar de isso não ter se transformado em reconhecimento financeiro. Ambas as histórias mostram que eles também estão trabalhando pelo valor "que é o que há".

Em ambos os casos, o salário ou valor pago em taxas para José Lucas e Ana não é o suficiente para o custo de vida deles, mesmo ambos sendo inegavelmente qualificados por terem experiência e, no caso de Ana, até um prêmio. Isto mostra que "a desculpa #1 do patronato" é falaciosa e incompleta, e achamos (eu, editora e publisher) que isso fica claro na reportagem. Empregadores costumam falar dessa falta de mão de obra qualificada, mas também que aumentar esse custo fixo seria "quebrar o negócio". Por isso ouvi o economista do Dieese, que mostra o buraco na lógica.

Quanto a empregadores que querem pessoas formadas em escolas estrangeiras e experiência no exterior, acredito que eles sejam os donos de restaurantes de alta cozinha ou com pretensões de se tornar um. Esse segmento do setor de gastronomia não era o meu foco nessa reportagem, por isso não entrei no mérito do tipo de educação formal e remuneração. Acredito que precisamos falar sobre remuneração justa para todos que atuam nesse setor. Não é razoável achar normal que uma pessoa receba um salário mínimo para trabalhar no ambiente quente e com pressão da cozinha, mesmo que ela não tenha educação formal.

Sobre o artigo do NYT, lerei em breve. Vou confessar que ando com muita preguiça de ler e falar de alta cozinha. Acredito que questões sociais do "trivial" precisam ser discutidas com mais urgência. Todo mundo sempre olhou para o trabalho gratuito dos estagiários de alta cozinha, e quem se submete a este tipo de estágio sabe que terá que abrir mão de remuneração e que provavelmente sofrerão assédio moral (ou pior). Há histórias do cotidiano que são problemáticas e revelam a estrutura social e econômica em que estamos vivendo. São essas que precisam ser contadas e olhadas de perto, porque não estão na mídia gastronômica, como o ranking do 50 Best ou Michelin sempre estiveram.

Acho que é isso. Espero ter elucidado algumas coisas. Obrigada mais uma vez pelo comentário. Caso você tenha alguma sugestão de tema para uma próxima reportagem, por favor, entre em contato! :)

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Oi, Flávia. Obrigado pela resposta.

O trabalho que você faz aqui é incrível, cuidadoso e detalhado, e não foi minha intenção dizer que faltava qualquer coisa à matéria — pelo contrário, vim fazer coro aos pontos levantados.

Quando digo que gostaria de ver alguém fazer esse levantamento, não quis dizer você especificamente. Embora não duvide em momento algum da sua capacidade de entregar um trabalho desse nível, entendo que seria um esforço diligente e duradouro de período integral. Apenas lamento que órgãos como os sindicatos de hoteleiros não tenham esse tipo de informação para direcionar o setor. Sinto muito se causei outra impressão.

De fato, o artigo se preocupa em cobrir todos os ângulos possíveis, inclusive do ponto de vista do profissional de cozinha. O que me chama a atenção — na vida profissional, não na sua matéria — é que a alegada falta de capacitação profissional não é atingida nem por quem se dedica a aprender na prática, nem por quem procura formação, nem por quem faz os dois. Fica, pelo menos pra mim, a pergunta: afinal, que capacitação é essa?

Por fim, vou concordar com você mais uma vez: o mundo da alta gastronomia também me interessa cada vez menos. Me parece muito mais urgente abordar, como você faz, as questões que afligem o setor no Brasil em vez de olhar para chefs famosos do outro lado do mundo. Entretanto, não posso deixar de pensar que esses restaurantes de alta cozinha determinam, ao menos em parte, o tom do setor. Talvez não diretamente, claro, mas sim influenciando a visão de restauração das melhores casas da cidade, dos reality shows de cozinha nacionais etc. E se a casa que atrai sobre si todos os olhares do mundo não se preocupa com pagamento de pessoal e cultura tóxica de trabalho, se os chefs celebridades nacionais (muitas vezes importados) não se preocupam em combater certos clichês ultrapassados do setor, o dono de restaurante da cidade pode não achar necessário inibir certas práticas por tê-las como típicas do ofício. Se as melhores casas da região, inspiradas por certos modelos internacionais, reforçam a ideia de que se deve trabalhar de graça (ou quase de graça) e que apenas chefs sócios podem ganhar salários dignos, acredito que não demore muito até que isso respingue para o restante do setor.

De resto, quero mais uma vez parabenizar pelo trabalho excelente que você faz aqui. O artigo está sim um primor, e mal posso esperar pelas próximas edições.

Abraços

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Assino embaixo de tudo que você pontuou aqui, Adnilson.

Como pode um dos setores de serviço que mais emprega no país não ter um sindicato forte? Acho que parte desse senso comum de que trabalhar em bares e restaurante ser um "bico" ajuda a enfraquecer a categoria, mas também penso que pode ser um dilema tostines: não se paga melhor porque não se organiza. Não sei. Estou pensando alto aqui. Tem mais coisas que implicam nessa má remuneração e a falta de clareza na "capacitação" desejada pelos empregadores com certeza pesa forte nessa equação.

Sobre olhar para o Noma e outros restaurantes vanguardistas, concordo contigo. O trabalho de pesquisa em ingredientes e técnicas é louvável e dita as tendências que vão pegar, cedo ou tarde, o barzinho de happy hour da esquina. Um exemplo é charcutaria e fermentados, que antes parecia algo muito distante de fazer no próprio local, e hoje é bem mais difundido em restaurantes pequenos e médios.

Quanto ao regime de trabalho e estágio gratuito (na real, o estagiário paga para trabalhar e morar em outro lugar, né?), eles ainda poderiam alegar que o treinamento dado e aprendizado valem o sacrifício. Não que eu concorde com esse pensamento, mas é uma justificativa aceita com facilidade. Diferente de um restaurante com menos pretensões de mudar o mundo da gastronomia. Essa desculpa esfarrapada não cola em qualquer lugar.

Espero que você acompanhe a newsletter e siga propondo o debate, Adnilson! Eu adorei trocar com você. Obrigada pelas respostas atenciosas e que trazem mais nuances à discussão! E, relendo minha resposta, talvez eu tenha adotado um tom defensivo. A intenção era trazer mais clareza para o que propus, mas soei arrogante. Obrigada por ignorar isso e conversar numa boa. Abraços!

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Não se preocupe, o perigo da comunicação por escrito é esse: não tem prosódia. Minha primeira mensagem também não deixou muita coisa clara, por isso achei importante me corrigir. O trabalho que você faz aqui é excelente, e deve ser difícil abrir a caixa de comentários e ver uma mensagem que pareça desmerecer parte desse esforço. Espero que você continue com o bom trabalho. Nos vemos por aqui! Grande abraço!

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Aproveitando o tema, acho que vale a leitura do artigo publicado essa semana no NYT sobre o fechamento do Noma ano que vem. Passa pelos custos da restauração mas também por um modelo de negócios cuio alicerce é muita gente trabalhando de graça

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