[entrevista: Carlos Monteiro e Patrícia Jaime] quem devora o guia alimentar brasileiro?
referência em pesquisa sobre nutrição epidemiológica no mundo, o Nupens – USP construiu o documento, que resta intocado nas ruínas das políticas públicas de segurança alimentar brasileiras
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Retrocedemos décadas no debate sobre a "comida de verdade" nestes mais de três anos de governo Bolsonaro. Se no final da década de 2010 o Guia Alimentar Para a População Brasileira, publicado em 2014, era um documento que poderia ficar nas entrelinhas da pauta, sendo a base que fundamentava um diálogo, hoje precisamos reafirmá-lo como o ponto de partida do debate público para que não haja argumentação falaciosa esvaziando a conversa.
Caso o índice de consumo de ultraprocessados no Brasil não tivesse subido, poderíamos até dizer que o Guia cumpre sua função e por isso, trazê-lo ao debate com tanta frequência seria redundante. O passo, então, seria consolidar seu papel no embasamento de políticas públicas para fortalecer a segurança alimentar e nutricional do brasileiro; jamais afrouxar o entendimento do que é alimento, igualando produtos ultraprocessados a refeições completas.
Na impossibilidade de rasgar o Guia, o governo Bolsonaro destruiu o tabuleiro do jogo, começando pela extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (CONSEA) no primeiro dia de mandato. Dois meses depois, a ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Tereza Cristina, anunciou a venda de armazéns públicos (de 180 unidades, 27 foram no primeiro ano de governo e postas à venda) em fevereiro de 2019, o que implica, entre outras consequências, a diminuição de capacidade de armazenamento de arroz, feijão, milho, farinha de mandioca e café e a regulação dos preços desses produtos para o consumidor final. A diminuição da estocagem de arroz por parte do Estado causou em 2021 a alta do preço do arroz e uma polêmica sobre a venda de arroz quebrado.
Os passos em direção à insegurança alimentar começaram no governo Temer, com a progressiva diminuição de orçamento destinado ao Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), chegando a reduzir em 77,3% de 2014 a 2020, bem como o programa de Cisternas, que teve seu pior desempenho em 2019, com uma queda de 80% no número de cisternas construídas em cinco anos. Um PAA e Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) enfraquecidos resultam em pobreza rural, pois os agricultores familiares e pequenos produtores perdem canais de venda. Como não existe vácuo, quem toma o lugar das hortaliças, legumes, verduras, pães, geleias e laticínios dos pequenos produtores é a indústria alimentícia, cuja matéria-prima vem da produção de commodities. O resultado: ultraprocessados vindos da indústria substituindo a comida que poderia vir do campo.
O Guia Alimentar para a População Brasileira recomenda uma alimentação à base de alimentos in natura ou minimamente processados (frescos, como frutas, legumes e hortaliças; ou que passam por beneficiamento, como arroz, feijão, castanhas), ingredientes culinários (tudo o que é acrescentado na preparação de alimentos, tais como sal, açúcar, óleo, vinagre, etc.) e processados (que passam por algum processo, tais como queijos, pães, conservas, etc), evitando o consumo de ultraprocessados, formulações industriais que levam parte de ingredientes culinários, geralmente com um teor de sal, açúcar e gordura mais alto do que quaisquer outros alimentos.
Os ultraprocessados podem ser prontos para consumo, como salgadinhos, bolachas recheadas, pães de forma ou bisnaguinha, ou que precisam ser "finalizados" pelo consumidor, como macarrão instantâneo, salsichas, alimentos congelados como nuggets e lasanhas prontas. Em comum, todos são hiperpalatáveis, ou seja, têm um apelo ao paladar pelo sabor que produz um prazer imediato, não sendo reconhecidos pelo corpo como não-alimento, e sim como "saboroso". Por isso, seu teor de calorias é alto, mas seus nutrientes e vitaminas, mesmo quando adicionados para "enriquecer" sua fórmula, não são absorvidos da mesma maneira que em um alimento in natura. Na dúvida se um produto é ultraprocessado ou não, preste atenção nas embalagens e no discurso com que o apresentam. Ultraprocessados possuem uma grande campanha de marketing para promover seu consumo – coisa que uma cabeça de brócolis ou um maço de couve jamais teve.
O brasileiro tem quase 20% de suas calorias provenientes de ultraprocessados; em países do Norte Global, como Canadá e Estados Unidos, esse número se aproxima dos 50%. Uma população que come mal é uma população que adoece. Em um país com um sistema público de saúde como o Brasil, isso significa onerar o setor com problemas que podem ser evitados a partir de investimento em segurança alimentar e nutricional e educação alimentar. A ferramenta existe e tínhamos uma série de políticas públicas que deram um pontapé para que a alimentação baseada em alimentos in natura fosse promovida. O que temos agora é um cenário ainda pior que o da fome da década de 1990, quando os ultraprocessados ainda não eram tão acessíveis quanto atualmente. São 33 milhões de pessoas passando fome no Brasil hoje, "graças" a desarticulação e exclusão de programas voltados à segurança alimentar – o Nexo Jornal fez um excelente resumo de como saímos de um cenário de fome para outro em 30 anos.
O governo Bolsonaro tentou alterar o Guia Alimentar, alegando que a classificação por nível de processamento dos alimentos era confusa. A argumentação é a mesma das associações de indústrias, que se posicionam como se as diretrizes do Guia fossem muito rígidas e inviabilizassem a alimentação do povo – e não as isenções fiscais para grandes indústrias e a falta de regulações para o setor. Ou, ainda, a falta de assistência e incentivo a quem realmente produz comida. Para ficar em dois exemplos, a entrevista com a engenheira agrônoma Nayla Almeida e a reportagem #11 | queijos no lixo: o que dificulta a produção em pequena escala no Brasil dão um panorama.
O Guia permanece na ruína, ainda intocado, contendo diretrizes que não podem ser seguidas pela estrutura pública porque não há onde executá-las.
Nesse contexto de escassez de alimentos por negligência do Estado e publicações com evidências cada vez mais robustas de que o consumo de ultraprocessados está ligado ao aumento de doenças crônicas não transmissíveis, solicitei uma entrevista com o pesquisador Carlos Monteiro, que coordena o Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens), da Universidade de São Paulo (USP). Carlos sugeriu que a entrevista fosse feita junto de Patrícia Jaime, professora titular do Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, vice-coordenadora científica do Nupens e da Cátedra Josué de Castro de Sistemas Alimentares Saudáveis e Sustentáveis, também na USP. Fizemos por email, com a participação da Patrícia especialmente na última questão, que trata de políticas públicas.
O Nupens, criado em 1990, é uma estrutura interdisciplinar de produção de conhecimento da USP, integrando pesquisadores de diferentes áreas, como economia, medicina, nutrição, e também outras universidades, como a Federal de Minas Gerais e a Estadual do Rio de Janeiro, e de outros países. Seu foco é produzir conhecimento sobre saúde pública e nutrição, desenvolvendo métodos de pesquisa para estudar como o brasileiro se alimenta e produzindo análises e diagnósticos para orientar políticas públicas.
O núcleo é a vanguarda da pesquisa científica epidemiológica em nutrição e saúde. Em 2010, com a publicação da classificação Nova de alimentos, o Nupens atualizou o paradigma vigente, que levava em consideração a pirâmide de alimentos. Em 2014, publicou junto do Ministério da Saúde o Guia Alimentar para a População Brasileira, em que é usada a classificação Nova. O Guia é um documento endossado como exemplo a ser seguido pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, Organização Mundial da Saúde e Unicef, e serviu de modelo para os guias alimentares do Canadá, da França, do Uruguai, do Peru e do Equador.
Monteiro foi listado como um dos cientistas mais influentes do mundo por quatro vezes pela consultoria britânica Clarivate Analytics, e do Nupens saem estudos como o de Maria Laura Louzada, que liga o aumento da prevalência de obesidade no Brasil ao aumento do consumo de ultraprocessados. "Nos últimos anos, a epidemiologia nutricional entrou em uma nova etapa de pesquisas, analisando a relação de ultraprocessados com doenças que, inicialmente, não estariam tão diretamente relacionadas à alimentação. Uma dessas novas linhas de pesquisa aborda transtornos de saúde mental. Alguns artigos já associam um maior consumo de ultraprocessados com um maior risco de desenvolvimento de depressão, por exemplo. São indícios de novos efeitos nocivos desses alimentos, mas que ainda devem ser investigados em detalhe para que se possa estabelecer uma associação clara", escreveram Carlos Monteiro e Patrícia Jaime.
Abaixo, os principais trechos da entrevista feita por e-mail com os dois pesquisadores:
O Guia Alimentar para a População Brasileira foi construído a partir da classificação Nova dos alimentos, que substituiu a pirâmide alimentar. Enquanto a pirâmide categoriza por tipo de nutriente, a classificação Nova considera o nível de processamento dos alimentos. Quando se verificou a necessidade de mudar o tipo de categorização e como se identificou que deveria ser o nível de processamento?
Durante a maior parte do século passado, o maior problema nutricional registrado no Brasil era a desnutrição. As populações mais vulneráveis do país não tinham consumo adequado de nutrientes importantes, como proteínas, vitaminas e minerais, o que levava a doenças como beribéri (deficiência de vitamina B1) ou pelagra (deficiência de vitamina B3), entre outras. Nesse contexto, a pirâmide alimentar fazia sentido: ela organizava os alimentos por tipo de nutriente, informando a população sobre as fontes de carboidratos, gorduras, proteínas, vitaminas e minerais.
Dos anos 1990 para cá, no entanto, a epidemiologia nutricional percebeu uma redução nos casos de desnutrição e um aumento na prevalência de doenças crônicas, como diabetes e hipertensão. É o que chamamos de transição epidemiológica. Ao mesmo tempo, dados de compras de alimentos pela população brasileira indicavam queda na aquisição de itens usados para cozinhar (óleo, sal, açúcar) e um aumento na compra de alimentos semiprontos ou prontos para consumo – em geral, ultraprocessados. A esse processo, damos o nome de transição nutricional. Com esse novo contexto, a pirâmide alimentar perdeu o sentido, já que ela colocava alimentos como arroz integral e, por exemplo, batata chips de pacotinho numa mesma categoria ("carboidratos").
Pensando na transição nutricional, percebemos que era necessário orientar a população a partir de uma nova lógica, que é a do processamento de alimentos, por meio da classificação Nova. A Nova foi criada há pouco mais de dez anos, e teve seu impacto ampliado pelo Guia Alimentar para a População Brasileira, lançado em 2014.
No momento, vivemos uma crise alimentar que se assemelha à sofrida nos anos 1990, quando 32 milhões de brasileiros passavam fome. Atualmente, são 33 milhões. Como falar de alimentação adequada nutricionalmente em um momento em que o acesso a alimentos está difícil e restrito? Como podemos começar a "consertar" esse cenário?
Em situações de aumento de insegurança alimentar, como vemos hoje no Brasil, é realmente difícil falar sobre a alimentação adequada e saudável. Grande parte da população enfrenta barreiras no acesso a alimentos frescos – e, ultimamente, a maior delas tem sido o preço cada vez mais alto de itens básicos, como arroz, feijão, óleo, café e hortaliças.
É necessário lembrar, no entanto, que há menos de dez anos o Brasil comemorava ter saído do Mapa da Fome da ONU, o que só foi possível com um conjunto amplo de políticas públicas de alimentação e nutrição. São iniciativas que envolveram desde programa de transferência de renda até ações dos conselhos de segurança alimentar e nutricional.
Aprendemos que a fome é combatida por políticas públicas, e é, seguramente, essa a melhor forma de consertar esse cenário.
A epidemiologia nutricional tem papel fundamental nesse contexto, que é o de gerar dados e análises para orientar a construção dessas políticas e as tomadas de decisões por meio de agentes do poder público.
O Nupens é referência em pesquisas e há dois anos lançou a Nutrinet, que tem por objetivo acompanhar o padrão alimentar de 200 mil brasileiros. Quantos brasileiros têm participado até agora? Existem resultados preliminares ou hipóteses que os pesquisadores estão considerando neste início de pesquisa?
Hoje, o NutriNet Brasil tem pouco mais de 100 mil participantes. São voluntários de todas as regiões do país, e de diferentes estratos sociais e níveis de escolaridade. Para participar, basta ter mais de 18 anos, ser residente no Brasil e responder a questionários enviados por e-mail a cada três meses. As inscrições podem ser feitas pelo site.
Ainda neste ano, os primeiros resultados da pesquisa começam a ser publicados. A ideia do estudo é acompanhar a alimentação da população brasileira, entendendo seus diferentes hábitos alimentares, suas relações com perfis demográficos e, principalmente, suas associações com diferentes desfechos de saúde.
Quais são os recortes de pesquisas sobre ultraprocessados que estão no horizonte do Nupens?
As próximas pesquisas do Nupens devem envolver justamente a análise de dados da coorte NutriNet Brasil. Será possível observar as associações entre o consumo de alimentos ultraprocessados e a ocorrência de doenças de grande frequência no Brasil de maneira prospectiva – ou seja, coletamos as informações no momento da exposição e acompanhamos a evolução dos participantes por um longo período. O NutriNet também tem períodos relativamente curtos entre o momento em que os alimentos são consumidos e o aparecimento de doenças. Obesidade, diabetes, dislipidemias e hipertensão arterial são alguns dos quadros que vamos investigar.
Durante uma coletiva organizada pela Agência Bori e Nexo Jornal, Patrícia Jaime apresentou o estado da arte das pesquisas sobre o impacto do consumo de ultraprocessados na saúde pública. Os estudos trazem evidências mais robustas que ligam o consumo de ultraprocessados ao aumento de doenças crônicas não transmissíveis, como obesidade, diabetes e síndrome metabólica em diferentes países, o que onera o custo do sistema público de saúde. Ao mesmo tempo, o Guia Alimentar para a População Brasileira é elogiado internacionalmente e serviu de base para guias alimentares de outros países. Aqui no Brasil, no entanto, as estruturas que permitiriam que ele fosse colocado em prática foram desmontadas, como o CONSEA e o PAA. Que papel desempenha o Guia Alimentar para a População Brasileira quando se extinguem e enfraquecem os órgãos que colocariam as recomendações do Guia na prática?
É fato que é por meio de programas e políticas públicas que as orientações do Guia são colocadas em prática. Um exemplo clássico é o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que limita a oferta de alimentos ultraprocessados e amplia a oferta de alimentos in natura e minimamente processados aos estudantes da rede pública de ensino do país inteiro.
Ainda que tenhamos presenciado o desmonte de diversas políticas públicas de alimentação e nutrição, o Guia Alimentar, que é um documento do Ministério da Saúde, segue como fonte oficial de orientação para a alimentação adequada e saudável da população brasileira. Em 2020, a tentativa de alteração do Guia gerou um amplo movimento de defesa por parte da população, principalmente por profissionais da saúde, e com boa cobertura de imprensa. Isso mostrou como os preceitos do documento vem sendo absorvidos pelo público.
Recentemente, como você mencionou ao longo da entrevista, pesquisadoras do Nupens publicaram os "Protocolos de uso do Guia Alimentar". São cinco fascículos dedicados a diferentes populações (adultos, idosos, gestantes, crianças e adolescentes) e que mostram aos profissionais da saúde como aplicar as orientações do guia em consultas individuais no âmbito da Atenção Primária à Saúde, no SUS. Trata-se de um outro papel desempenhado pelo Guia no Brasil.
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Desde ontem maratonando suas newsletters! Adorei o que encontrei por aqui. O Guia Alimentar foi importantíssimo na minha transição para o vegetarianismo estrito (veganismo). Abriu a discussão sobre os ultra processados. Na época eu morava no Maranhão e divulguei bastante. Vi ele fazer a diferença na alimentação de muita gente... Sinto tanto por ele ter sido questionado e colocado de lado nos últimos anos. Espero que isso se reverta em breve!