#15 | comida do passado, comida do futuro
duas reportagens sobre o que se imagina que vamos comer nas próximas gerações
Uma discussão sempre presente no setor de alimentação fora de casa é o que vai se comer no futuro. A curto prazo, pensa-se em tendências. A longo prazo, em processos produtivos, ingredientes-base e mercado. Mesmo guiadas pelo pensamento mercadológico, as decisões partem de um balanço entre cultura, que é repetição e familiaridade, e tecnologia, como o desenvolvimento de novas estratégias para continuar produzindo as mesmas matérias-primas e seus análogos derivados, similares ao que já se come. Daí o nugget. Daí o refrigerante. Daí o biscoito industrial.
E é nessa linha que penso quando digo que não acredito que vamos ter uma “transição proteica” para comer farinha de grilo e de barata. Seria nutricionalmente mais eficiente, barato e sim, seria possível. Mas não tem nada a ver com o que nós – pelo menos não os seres urbanos que somos em maioria – comemos. Com o jeito que preparamos comida. Com o que reconhecemos como comestível. É até possível que a indústria queira se aventurar a enriquecer alimentos com proteína de insetos como um teste ou uma aposta em um nicho de mercado, mas uma transição, de fato, não parece algo que vamos ver nas próximas gerações.
Substancialmente, o que a gente vai continuar comendo é o que já estamos acostumados a comer, sejam esses preparos atravessados por produtos industriais que apelam à conveniência e preço, sejam eles à “moda antiga”. Há espaço de manobra dentro desses dois extremos, claro.
Estava pensando nisso ontem quando percebi que há duas reportagens que publiquei no último ano que de alguma forma apontam para esses dois caminhos: o da tradição e o da inovação.
A primeira reportagem, que replico abaixo, foi publicada na revista Tutano em 2023 e é sobre fermentação, essa técnica que nos acompanha há pelo menos 8 mil anos. A segunda saiu em abril deste ano, publicada pelo O Joio e o Trigo, uma apuração que levou dois meses e que trata de uma aposta para o futuro: a carne cultivada. Você pode ler a reportagem “Startups dizem produzir carne cultivada em escala, mas ciência não encontra os mesmos resultados” direto no site, onde tem um infográfico detalhado sobre esse tipo de produção que ainda não atingiu a larga escala.
Inclusive, por causa da publicação no Joio, falei sobre a apuração e o tema “comida do futuro” no podcast Viracasacas no final de abril. Fiquei muito contente em participar de um dos programas que me acompanham semanalmente há uns cinco anos. Avante, piazada!
AJUDE O RIO GRANDE DO SUL
O Viracasacas é um podcast gaúcho e o episódio em que participei foi ao ar justo na semana em que o Rio Grande do Sul sofreu com as enchentes. Na sequência, o Vira fez episódios sobre a catástrofe e tem trabalhado na divulgação de como ajudar as pessoas, como neste programa com o Fabrício Pontin.
Minha colega de profissão e amiga Renata Vidal, do Palavras Temperadas, divulgou essa semana um link com uma lista dos abrigos no estado e o que cada um precisa (e também o que está sobrando em cada um deles):
Não importa se a comida do futuro vai ser feita com as técnicas do passado ou de forma inédita – uma conserva fermentada e uma almôndega de carne cultivada sairiam de um mesmo tipo de equipamento, um tanque biorreator, como os da foto abaixo.
O ESSENCIAL É INVISÍVEL AOS OLHOS (NUS)
microscópica, a fermentação transforma alimentos e a sociedade
Esta reportagem foi produzida durante março de 2023 para a edição de julho de 2023 da revista Tutano. A revista foi distribuída gratuitamente em restaurantes de Curitiba e São Paulo e também está disponível em pdf (da página 8 a 11).
Olhar para o passado é uma constante quando se fala em criação. Na gastronomia, o resgate de técnicas ancestrais traz novas percepções de como cozinhar, servir e entender a comida. A fermentação nunca esteve fora da cozinha, mas tem sido notada, experimentada e debatida como nunca antes.
Foi um interesse crescente: em 2010 o restaurante Noma foi eleito pela primeira vez como o melhor do mundo pela premiação 50 Best Restaurants. Desde então, René Redzepi nunca mais saiu dos holofotes. O restaurante ditou tendências no uso de ingredientes locais – um reforço da influência do chef Gastón Acurio, que se destacou na década anterior por valorizar a biodiversidade peruana –, apresentação e técnicas de cocção. Cozinheiros de todo o mundo se sentiram encorajados pelo trabalho do chef dinamarquês e mimetizaram a ação, olhando ao seu redor e para o seu passado.
As conservas do restaurante nórdico inspiraram os picles e a presença do ácido como um gosto desejável nos pratos. Um novo impulso foi dado por Redzepi quando lançou o livro The Noma Guide to Fermentation, em 2018. Cozinheiros vasculharam livros, cadernos de receita e registros de conservas tradicionais de diferentes culturas como forma de estudar a técnica. "Antigas práticas indígenas em todo o Brasil utilizam a fermentação, e cada onda de migração para o Brasil trouxe fermentações de diferentes partes do mundo. O que está mudando agora é a conscientização e o interesse pela fermentação", aponta Sandor Katz, autor de A Arte da Fermentação, publicado em 2014 no Brasil pela Editora Tapioca (esgotado).
O TEMPO DAS COISAS
Ao fermentar, a cozinha moderna se depara com um ingrediente impossível de manipular: o tempo. O instantâneo não existe para as bactérias e fungos, e, ao acompanhar o desenvolvimento de borbulhas, texturas e aromas, o ser humano se reaproxima da autonomia alimentar.
O livro de Katz deu um start nessa efervescência. A fermentação ganhou espaço nas páginas e programas culinários e gastronômicos na última década com as conservas de vegetais lactofermentados, que têm o azedinho do ácido lático como principal característica, e com os pães de fermentação natural, levemente ácidos. Nos dois casos, os microrganismos se alimentam dos açúcares presentes no alimento, liberando gás carbônico, e compostos aromáticos, além de álcoois ou ácidos.
"Dependendo do grupo microbiano, teremos compostos aromáticos completamente diferentes produzidos a partir da glicose", explica o professor Antônio Fernandes de Carvalho, doutor em Ciência e Tecnologia de Alimentos e especialista em microbiologia pelo Instituto Pasteur Paris. O carnaval captado pelo olfato nem sempre será o que vai sentir a língua. Isso porque parte dos compostos que as papilas gustativas experimentam são resultantes da degradação de proteínas.
Apesar de ser mais conhecida por degradar carboidratos, a fermentação também acontece nas quebras de cadeia proteica. É esse processo que confere maciez à carne maturada e faz com que o sólido interior de um queijo de mofo branco fique cremoso em questão de dias. As enzimas dos microrganismos "cortam" a molécula de proteína e a transformam em compostos menores, cadeias peptídicas e aminoácidos, e, a depender da bactéria, fungo ou levedura presente, será um recorte diferente da proteína. Isso acontecerá também com moléculas de gordura, e muitas vezes é o que causa o aroma rançoso de produtos ricos em lipídios, como castanhas.
Produtos de baixa qualidade também passam por fermentação, mas de maneira acelerada e com maior assepsia possível – o que é bom para a segurança de alimentos, uma vez que são produzidos em larga escala; mas péssimo para o desenvolvimento de aromas e sabores complexos. O café commodity secando no terreiro, mesmo que seja por pouco tempo, fermenta e desenvolve aromas e sabores pouco agradáveis. As amêndoas de cacau, envoltas em polpa úmida, precisam fermentar antes de serem secas e torradas em temperatura alta, pois o amargor do queimado esconde os defeitos do grão. O pão e a cerveja industriais, que começam como uma mistura de cereais e água, são o resultado de um trabalho humano e de inúmeros seres unicelulares selecionados, despejados sobre a panela para que comecem a trabalhar.
A indústria alimentícia tomou para si a função de transformar alimentos por meio de microrganismos no século 20, no que Katz chama de "guerra às bactérias". Por pelo menos duas gerações, perderam-se tradições como o chucrute da oma, o pepino azedo na folha de parreira, e o tepache, bebida de cascas de frutas fermentadas. "Perdeu-se muito conhecimento de fermentar queijo e de fazer conservas caseiras por desconhecimento e medo de contaminação", aponta Carvalho.
COMEÇAR NOVAS CULTURAS
Mesmo que interrompida a passagem da tradição em algumas famílias, a retomada tem partido de curiosos que resolveram desbravar o assunto, um pote por vez. "Eu ensino o processo de observação", diz Carolina Dini, cozinheira e comunicadora, autora do blog de receitas Cebola na Manteiga e do e-book Para Começar a Curtir: Fermentação de Vegetais. Carolina ministra cursos livres de fermentação selvagem em que apresenta os princípios de preparo de conservas em salmoura, bebidas fermentadas e massas de cereais. "Koso e 'refrigerante' são processos que, no interior de Minas Gerais, as pessoas fazem intuitivamente", exemplifica, citando o xarope enzimático de frutas fermentadas e o tepache, popularmente chamado de refrigerante natural.
O resgate da técnica exige dos desbravadores uma virtude pouco praticada nos dias atuais: a paciência. "Observar de perto a transformação intensa de uma coisa é uma possibilidade de desacelerar em uma sociedade que está carente de processos que levam tempo", diz Carolina. Em questão de anos, o que parecia ter se perdido, se multiplica-se em fóruns on-line e redes sociais, vira tema em congressos, mesas de bar e entre comensais de restaurantes de alta cozinha. Outra virtude exigida é certa tolerância à frustração. "É tentativa e erro. Mais importante que entender o que acontece microscopicamente é saber o ponto em que se quer interromper a fermentação e o que pode influenciar nisso. Aí você começa a ser sistemático e fazer testes com tempo, temperatura, proporção de sal", explica Lara Jardim, cozinheira do Vinagreira Cozinha.
Nesse exercício de empiria, Lara, Carolina e outros cozinheiros voltam a olhar com curiosidade e diligência para as transformações invisíveis. A vastidão de microrganismos e como eles agem ainda é um mundo recém-explorado pelo Homo sapiens, desde 8 mil anos a.C., perplexo com o milagre do leite que vira queijo.
PERGUNTE, E A TRADIÇÃO RESPONDERÁ
Com a ascensão das cozinhas asiáticas no país, o kimchi foi uma das conservas popularizadas. O fermentado coreano de acelga com molho de peixe, pimenta e alho, para descrever os ingredientes-base, tem picância e acidez pronunciadas, e passou a ser uma das receitas testadas por brasileiros com pouca ou nenhuma intimidade com a cultura do país. Parte do mérito é também da maneira como a Coreia do Sul trabalha seu soft power – a música, o audiovisual e a gastronomia são seus principais produtos, apresentados consistentemente ao longo dos anos.
Na ExpoMilão de 2015, cujo tema foi "Alimentar o planeta, energia para a vida", o país apresentou sua cozinha ancestral como resposta à necessidade de alimentar uma crescente população mundial.
A experiência imersiva do pavilhão montado pela Coreia do Sul incluía a reprodução gigante do onggi, o jarro de barro tradicionalmente usado para enterrar os alimentos para fermentarem no subsolo. O objeto foi escolhido como a síntese da cozinha coreana, representado como um portal para o futuro da alimentação no planeta. Em um dos vídeos projetados nas paredes da mostra, lia-se o conselho: "Pergunte, e a tradição responderá".
Menina, sobre a questão da comida do futuro, acho que a cerne da discussão deve ser se teremos capacidade de escolha, né? Muita gente gostaria de comer filé e come salsicha. Eu gostaria de cozinhar mais vegetais maravilhosos e me rendo aos pacotes muitas vezes. Com as mudanças climáticas, estamos mais vulneráveis a perdas nas produções agrícolas. Enfim, mais uma edição maravilhosa! :)