#14 | safra sem saída: o trabalho análogo à escravidão na cadeia produtiva de alimentos no Brasil
entre 1995 e 2022, sete dos dez setores econômicos com maior número de trabalhadores resgatados de condições degradantes de trabalho estão ligados à cadeia produtiva agropecuária
Esta reportagem foi produzida durante março de 2023 para a edição de julho de 2023 da revista Tutano. A revista foi distribuída gratuitamente em restaurantes de Curitiba e São Paulo e também está disponível em pdf (da página 20 a 22).
SAFRA SEM SAÍDA
escravização da mão de obra permeia toda a cadeia produtiva de alimentos no Brasil
O noticiário de fevereiro [de 2023] deixou um travo amargo na garganta dos consumidores de vinhos brasileiros. Aurora, Salton e Garibaldi, três grandes vinícolas da Serra Gaúcha, tinham em suas vindimas trabalhadores em situação análoga à escravidão. Terceirizados pela Fênix Serviços de Apoio Administrativos, 207 trabalhadores foram resgatados em 22 de fevereiro, após três deles fugirem de madrugada e procurarem ajuda em uma delegacia de polícia em Caxias do Sul.
Naturais do estado da Bahia, os trabalhadores viajaram ao Rio Grande do Sul pela promessa de um salário de R$ 3 mil por um período de 70 dias. O que encontraram foram alojamentos pequenos e abafados, comida estragada e jornadas em que o único descanso era uma curta noite de sono, conforme consta nos relatos ouvidos pelo Ministério Público do Trabalho do Rio Grande do Sul (MPT-RS).
O salário atrasava ou era consumido pelo desconto do translado, alojamento, alimentação e equipamentos de proteção individual (EPIs), quando havia. Além da vindima, os trabalhadores podiam ser alocados em aviários, frigoríficos, indústria metalmecânica ou na construção civil. Os empregadores restringiam sua circulação, forçando-os a comprar provisões na mercearia gerida pela própria Fênix, com valores inflacionados. Punições físicas como surras, tortura e ameaças de morte eram formas de manter os trabalhadores "na linha".
Poucos dias depois do escândalo na Serra Gaúcha, o extremo sul do estado teve 85 pessoas, entre adultos e adolescentes, resgatados de trabalho escravo nos arrozais; e uma operação do MPT-SP libertou 17 trabalhadores mantidos em regime similar em um restaurante de sushi na cidade de São Paulo.
Em 2022, foram resgatados 2.427 trabalhadores em condições análogas à escravidão – 1 a cada 90 mil brasileiros. Sete dos dez setores econômicos com maior número de resgate entre 1995 e 2022 estão ligados à cadeia produtiva agropecuária: cana-de-açúcar, atividades de apoio à agricultura, lavoura temporária, café, fruticultura, soja e criação de bovinos. Ainda que boa parte seja produção de commodities, uma parcela desses produtos é processada pela indústria alimentícia para abastecer o mercado interno. Os dados são da Plataforma SmartLab, iniciativa conjunta entre MPT e Organização Internacional do Trabalho (OIT) do Brasil.
Na lavoura ou na cozinha, práticas abusivas e humilhantes são normalizadas. "Nunca trabalhei em cozinha que respeitasse as 44 horas de trabalho semanal, hora de intervalo, refeição adequada, transporte e pagamento por hora extra", relata Vitor Abreu, cozinheiro paulista de 28 anos que trabalhou para a Oliveira & Santana por 21 dias entre janeiro e fevereiro de 2021. A empresa é de propriedade de Pedro Oliveira de Santana, dono da Fênix. À época, Vitor procurou a terceirizada após ser dispensado de uma padaria artesanal em Bento Gonçalves. Único branco no grupo de 17 homens contratados naquele período, Vitor também era o único com ensino superior. Foi imbuído de ser líder da equipe, cujo expediente se dava das 5h às 22h.
A Oliveira & Santana trazia trabalhadores de pequenos municípios da Bahia continuamente do início ao fim da vindima. Em três semanas, Vitor teve 24 pessoas sob sua liderança, todos homens negros e pardos, como o próprio Pedro, nascido em Valente, no nordeste do estado. "Contam que ele trabalhou na colheita de cana-de-açúcar desde os 14 anos. A meritocracia está enraizada nele e nos funcionários dele. Entendem que, se o Pedro fez o primeiro milhão tendo trabalhado de bóia-fria, o trabalho forçado é algo que todo mundo conseguiria superar", analisa Vitor.
"A dinâmica de reduzir uma pessoa à condição análoga à de escravidão se dá de várias maneiras além da coerção física. Há relativização das condições, um jogo psicológico", diz a procuradora Cristiane Lopes, do MPT-PR. Quando questionados sobre as condições de alojamento e alimentação, os capatazes faziam troça das reclamações – "Tá achando que é hotel cinco estrelas?". Pausas por acidentes de trabalho, faltas por motivo de saúde e pausas intrajornadas eram vistos como corpo mole e geravam multas estratosféricas.
"Safreiros migram para regiões diferentes de acordo com a época e oferta. Quando os gatos [aliciadores] trazem trabalhadores de outra região, usam alojamentos que não estão preparados para receber um grande volume de pessoas", relata a procuradora. "Então, em um espaço que acomodaria 50 pessoas, eles colocam 150, e dizem: 'É só por um tempo'. Isso é tortura", afirma Cristiane.
O efeito de manter pessoas em espaços superlotados e insalubres, sem condições para voltar à sua cidade ou procurar outra ocupação, é a degradação psicológica. Se a fuga não é possível, o álcool e a violência podem ser as saídas. "Não pude administrar como eu queria, para atenuar a pressão. Fiquei na mira da terceirizada depois de algumas brigas que comprei", diz Vitor.
Em fevereiro de 2021, durante o descarregamento de caixas de uva em um galpão da Aurora, Vitor experimentou uma tontura e enjoo próximo à esteira, onde empilhava caixas vazias que saíam da desengaçadeira. À sua volta, todos estavam pálidos. Um dos homens segurou o vômito e correu para fora do galpão. Outros seguiram. A técnica de segurança do trabalho apareceu de prancheta na mão, ordenando que as pessoas voltassem aos seus postos: "Vocês estão assim só porque vazou um pouquinho de sulfito? Um bando de homens desse tamanho se abatendo por causa disso…", relembra Vitor. Um deles, asmático, teve uma crise e não foi ao hospital – alguém buscou seu nebulímetro no vestiário.
O dióxido de enxofre, conhecido como sulfito, é um conservante comumente adicionado no mosto para controlar fermentações indesejadas e ao final da vinificação, para evitar que o vinho da garrafa vire vinagre. Mais pesado que o ar, o gás se acumula em espaços com pouca ventilação e provoca falta de ar, ardência nos olhos e nariz. "Aí eu instaurei uma rotação para que parte deles descansasse. No fim do dia, a supervisora reclamou, porque os trabalhadores eram pagos por hora e deveriam estar ocupados durante todo o expediente", conta Vitor.
RACISMO NA RECEITA
Na operação deflagrada contra a Fênix em 2023, a Serra Gaúcha tinha um contingente de pessoas que atravessaram três regiões do país para trabalhar temporariamente no campo. Ainda que alguns gaúchos tivessem migrado para a região para fazer o mesmo trabalho, não passaram por situações como as infligidas aos baianos – a maior parte deles, negros.
Dos resgatados em 2022, 66% eram pardos e 17%, pretos, e 43% não terminaram o ensino fundamental. Aceitar um trabalho sem um contrato formal – ou sem entender o que se lê no papel – não é uma escolha para essas pessoas. "A vulnerabilidade homem preto em insegurança alimentar é uma propensão para torná-lo alvo de trabalhos degradantes e análogos à escravidão", observa Camila Penna de Castro, socióloga integrante do Grupo de Pesquisa em Sociologia das Práticas Alimentares (Sopas) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
"Quando a situação de pobreza e insegurança alimentar se intensifica, é o homem que sai de casa, da cidade, para procurar emprego, enquanto a mulher fica com a responsabilidade de cuidar dos filhos", pontua Ana Lopes, socióloga também integrante do Sopas-UFRGS. As sociólogas publicaram um artigo em que comentam a conexão entre branquitude, racismo e precarização do trabalho no meio rural brasileiro, apontando que a lógica de exploração do trabalho do homem preto se perpetua.
Cerca de cinco gerações separam ex-escravizados dos dias atuais. Há 135 anos, a promulgação da Lei Áurea proibiu o trabalho escravo em território brasileiro, e quem era propriedade passou a ser mão de obra barata, sem indenização, nem um programa de inclusão dessas pessoas à cidadania. A principal omissão do Estado brasileiro foi nas políticas de acesso à terra: ex-senhores de escravos não perderam suas propriedades, e boa parte dos ex-escravizados que permaneceram na área rural seguiram trabalhando para a mesma família.
O Artigo 243 da Constituição Federal, modificado em 2014, propõe a expropriação de propriedades rurais e urbanas com trabalho escravo para destiná-las à reforma agrária ou habitação popular. O artigo ainda está sem regulamentação. "Entidades como a Confederação da Agricultura e Pecuária têm muita capacidade de lobby no legislativo, e esses setores ligados à produção de commodity têm uma política muito conservadora de desconcentração de terra", aponta Camila. Sem acesso à terra desde o século 19, milhões de famílias pretas não puderam construir uma história de trabalho no campo como os colonos europeus. Restou a eles serem meeiros e funcionários.
TERRA COM DONOS, MAS SEM OLHOS
Se abusos no ambiente de trabalho são comuns em escritórios e indústrias, longe dos centros urbanos, eles podem acontecer sem testemunhas. Em todo o solo nacional, há 100 milhões de trabalhadores brasileiros, mas os auditores-fiscais do trabalho, responsáveis por garantir direitos e segurança no trabalho, são 1.949.
Isto é pouco mais da metade das 3.644 vagas existentes, segundo dados do Sindicato Nacional dos Auditores-Fiscais do Trabalho (Sinait). A categoria está sem concurso público desde 2013, quando foram alocados 100 auditores. Após os resgates dos trabalhadores na vindima, o Ministério do Trabalho e Emprego anunciou em 24 de abril que um novo concurso público será realizado ainda em 2023.
A falta de funcionários nessa função faz com que o trabalho administrativo seja prioridade em vez do campo – deflagrar uma operação após denúncias de trabalho análogo à escravidão tem altos custos e envolve coordenar a logística entre Polícia Federal, Ministério Público e Ministério do Trabalho para agir no local.
No início de março, Salton, Aurora e Garibaldi assinaram um termo de ajuste de conduta de R$ 7 milhões com o MPT. A Fênix pagou as verbas rescisórias, mas recusou pagar a indenização de R$ 600 mil aos trabalhadores, alegando não ter havido trabalho análogo à escravidão. O proprietário, Pedro Oliveira de Santana, é investigado por tráfico humano e por submeter pessoas a trabalho análogo à escravidão.
Salton e Aurora destacaram em seus sites os links para o canal de denúncia e notas de esclarecimento. Entre janeiro e março de 2023, as duas vinícolas colheram mais de 97,3 mil toneladas de uva. Já no site da Salton, não há destaque para nenhuma dessas informações. A Aurora divulgou o número de trabalhadores envolvidos durante o período: mais de cinco mil pessoas, incluindo famílias da região, vinhedos fornecedores, funcionários da vinícola e, é impossível não apontar, trabalhadores precarizados.
Finalmente consegui ler essa matéria, não por falta de acesso, tinha lá bonitinho no site da Tutano, mas porque esse assunto havia me consumindo ano passado. Agradeço pelo trabalho, Flávia.
Olha quem voltou!!!! (comentando feliz ignorando a pauta no momento)