[entrevista: Nayla Almeida] cercos e apertos contra a agricultura familiar
não basta a venda de alimentos na feira para manter as famílias agricultoras brasileiras: sem políticas públicas para compra de alimentos, consumo individual é enxugar gelo no avanço do agronegócio
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No dia 10 de fevereiro, um menino de nove anos foi morto a tiros em um atentado contra uma família de agricultores. Tentando se esconder debaixo da cama com a mãe, o menino foi atingido depois de sete homens encapuzados terem atirado contra seu pai, que sobreviveu. Geovane da Silva Santos é presidente da Associação dos Agricultores Familiares de Engenho Roncadorzinho, no município de Barreiros, em Pernambuco. Levou um tiro de raspão no ombro, não sabemos se por sorte ou por sadismo. Seu filho não resistiu aos ferimentos ao chegar ao hospital.
A cidade de Barreiros é minúscula se comparada ao tamanho do Brasil e ao volume de comida que se produz diariamente em nosso território. Em reportagem do portal G1, fala-se de uma disputa pelo terreno de 790 hectares pelas 70 famílias de ex-trabalhadores da massa falida da Usina Santo André, que não receberam seus direitos trabalhistas. Estão lá há 40 anos. Ocorre que, há dez anos, o terreno foi arrendado (pelo próprio Judiciário?) para a Agropecuária Javari, que começou a plantar cana-de-açúcar em monocultura. Há pelo menos cinco anos começaram os conflitos: destruição das lavouras dos agricultores familiares, o uso deliberado de agrotóxico para contaminar a água dessas famílias e suas plantações.
O assédio e as execuções no campo são o retrato mais fiel do Brasil, do norte ao sul. Em Viúvas da Terra, o jornalista Kléster Cavalcanti narra a história de mulheres que perderam seus parceiros por lutas do campo e da floresta. Em Torto Arado, a disputa por autonomia e autodeterminação da população quilombola aparece na trama de um jeito poético primeiro e cru depois. Um é jornalismo, o outro é ficção. Ambos são histórias de verdade, que mostram de quão longe vem a rotina de matar para desmobilizar. Para lembrar alguns nomes da região em que morreu o filho de Geovane, a Comissão Pastoral da Terra Nordeste II mantém uma linha do tempo com o nome de todos os trabalhadores mortos por conflitos de terra de 1988 a 2016 ao final desta página.
Se ocupações por direito, como é o caso de Engenho Roncadorzinho, sofrem ameaças diretas, a agricultura familiar "sem conflito de terra" (muitas aspas aqui) sofre outro tipo de cerco, também debilitante para a soberania e segurança nutricional e alimentar. Só que essa é limpinha e tem cara de legalidade. "Chamamos de 'aperto'", me contou Nayla Almeida, engenheira agrônoma pela Universidade de São Paulo (USP) e mestranda em Desenvolvimento Rural pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que pesquisa mercados imersos. Conversamos no início de janeiro, por telefone e, provavelmente, enquanto você lê estas linhas, ela está prestes a defender sua dissertação.
Os pequenos agricultores costumam ter em sua propriedade uma diversidade de produção, que pode ou não ser comercializada. Há um cultivo que pode ser predominante, vendido para as agroindústrias, que vai pagar as contas, enquanto a roça, à parte, destina-se à alimentação da família. Parece uma lógica sustentável, se não fosse cada vez mais comum que se pare de fazer sua própria roça para aumentar a área destinada ao cultivo comercial. No "aperto", as grandes indústrias pressionam economicamente esse pequeno produtor. "A remuneração fica menor, a demanda também. Eles escanteiam o produtor e a produção diversificada vai perdendo espaço. Nas áreas rurais, os gastos com alimentação estão muito altos, como mostra a Pesquisa de Orçamento Familiar. Muito disso está ligado a essa pressão, a uma situação em que aquela propriedade está voltada para a produção de uma mercadoria", disse.
É aí que entra a pesquisa de Nayla. O conceito de mercado imerso é relativamente novo no Brasil, e se refere a canais de troca imersos em relações sociais. Quem dita a dinâmica de um mercado imerso não é o produto, e sim os arranjos que configuram as trocas feitas nele.
"O mercado da soja pode acontecer em qualquer lugar do Brasil, porque tem tecnologia para isso. Já o mercado imerso é ligado a um contexto social e espacial específicos, construídos por pessoas e ideias, e criados no espaço em que se desenvolveram", explica Nayla. Ou seja: a soja (e outras commodities) não precisam ter uma relação estabelecida entre território, pessoas e o uso daquele produto.
Nunca é demais lembrar que a soja, o milho, a cana-de-açúcar e demais produtos para exportação cultivados em monocultura ou que cobrem grandes áreas de uma pequena propriedade sempre estão tirando espaço para plantar alimento para a população do país. A terra é finita, mas as bocas se multiplicam – somos 212,6 milhões de brasileiros – e a contínua pressão do agronegócio para expandir campos de soja nos últimos anos fez com que, em 2022, a área plantada de arroz, feijão e mandioca seja a menor da série histórica. Vai faltar comida e os preços desses produtos vão às alturas de novo.
No horizonte dos pesquisadores de mercados imersos está a ideia de ampliar a visão da sociedade e governança para a necessidade de a agricultura familiar ter acesso a outros espaços – vender na feira livre, para o centro de abastecimento ou para o supermercado são canais dentro de um mercado imerso, mas não podem ser os únicos.
"Tem de se viabilizar outro canal possível para a agricultura que não seja só o mercado global. O agricultor não pode ficar subordinado a um canal só. Ele precisa ter mais canais para ter autonomia no âmbito da propriedade agrícola e poder escolher qual canal acessar dentro do espaço em que ele está", diz. Um único caminho, como a venda de uma produção agrícola para uma grande indústria, é deixar o agricultor nas mãos do mercado, que não olha para o todo, apenas para o produto. É também assim que acontece o "aperto".
As políticas públicas como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) garantiam canais extras (e vendas mínimas garantidas) aos agricultores familiares, e faziam com que eles tivessem diversidade de cultivo para abastecer escolas, hospitais, asilos, restaurantes populares, penitenciárias, estoques públicos e demais aparatos. A visão da política pública era nacional, mas acontecia de maneira territorial. Com a diversidade de produção, a qualidade da alimentação de todos os envolvidos aumenta – do agricultor e demais cidadãos –, e o preço da comida fica dentro do “pagável” para todos.
Há quem diga que o cultivo de frutas, cereais, leguminosas, hortaliças, e produção de carnes, laticínios e ovos da agricultura familiar é pouco, mas é somando quilos que se chegam às toneladas.
Um aumento de safra de commodity garante uma balança comercial positiva? Sim. Mas o dinheiro proveniente da exportação desses produtos mal entra nos cofres públicos: o imposto pago pelo agronegócio é ínfimo, enquanto os valores em isenção fiscal e incentivo são vultuosos. Usar o imposto que entra pela exportação de commodity é insuficiente para importar alimentos de outros países, que vendem em dólar. Como eu já disse antes, é o caminho mais longo da mão à boca. Balança comercial não é o único indicativo da saúde de um país, muito menos em um país em que agronegócio e produtos ultraprocessados andam lado a lado.
Nayla trabalhou com extensão rural voltada à agricultura familiar em vez de grandes mercados, como é de praxe nas faculdades de Agronomia. O grupo do qual fez parte auxiliava os agricultores com documentação e intermediava contato com as prefeituras. "Vi que tinha muita coisa a compreender na agricultura familiar para além de olhar os circuitos curtos", relembra. "Cada lugar terá uma dinâmica específica de acordo com dispositivos governamentais e institucionais. Olhar para o mercado permite entender o agricultor dentro dessa dinâmica de compra e venda de produtos alimentares. Até que ponto as relações sociais permitem moldar um mercado favorável para o agricultor, para que sejam melhor remunerados?", questiona.
Escrevi para a Nayla Almeida após ler seu artigo na Agência Bori sobre mercados imersos, em que grifei o seguinte trecho:
É claro que os sistemas alimentares globais continuarão existindo. O fluxo de alimentos continuará inundando os supermercados com mais do mesmo, com centenas de novos produtos aparentemente diversos. Mas, ao mesmo tempo e eventualmente num mesmo lugar, existem outros arranjos mercadológicos possíveis: os mercados imersos podem ser opções de abastecimento para além dos supermercados convencionais, enquanto estruturas centralizadoras do valor produzido por milhares de agricultores e agricultoras.
A entrevista foi editada e organizada para melhor entendimento.
Durante a pesquisa, houve algo que te surpreendeu?
Eu trabalho na ideia de mercados territoriais, que são trocas econômicas situadas num espaço, mas com características como tradições culturais, valores culturais, mecanismos de trocas econômicas específicas de lugares. Fui estudar a manga Ubá em Minas Gerais, na cidade de Ubá. É uma variedade que não tem padrões de mercado que vemos por aí: ela é pequena, muito amarela, muito fiapenta, muito doce. Tem uma festa tradicional, um doce tradicional chamado mangada. Os habitantes locais preferem essa manga à outra. O mercado da manga Ubá emerge desse território. Você vai ter esse produto na feira, nas casas das doceiras (que nem vendem no mercado), e existiu até um processo de patrimonialização por parte da prefeitura.
Houve um movimento de agroindústria grande que se estabeleceu na região para comprar essa manga, porque ela é tão doce que diminui a quantidade de açúcar para adoçar o suco. A indústria mistura a manga Ubá com outra manga para produzir esse suco. Nisso, a especificidade da manga se perde.
Os agricultores da região de Ubá são muito independentes, não têm cooperativa e a assistência da Emater é insuficiente para atendê-los. [Desenvolver as especificidades deste mercado da manga Ubá] Poderia trazer benefícios à região que ainda estão latentes. Desse jeito, a demanda está atrelada e subordinada a um mercado global de sucos concentrados. Poderia ter, por exemplo, uma linha de crédito para cooperativa, uma política pública que olhasse para a produção de manga. Esse é só o exemplo de uma situação, mas tem vários produtos específicos no Brasil que se baseiam em relações sociais. Não é só o mercado global pela lei da oferta e da demanda que vai reger as trocas econômicas. Há muita troca de produto pela manga Ubá, tem agricultor que doa a manga para as doceiras fazerem mangada. É uma dinâmica territorial muito particular.
Você pesquisa agricultura familiar. Nesse momento, muitos de nós conseguem apenas dizer que tudo está desmontado. Você poderia exemplificar o que significa esse desmanche do PAA e Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA), direta e indiretamente?
Especificamente do PAA, há uma piora na qualidade dos alimentos fornecidos em escolas e hospitais. Sempre há críticas, porque era um preço baixo, mas era venda garantida. Era um canal que não existe mais. Essa produção, o agricultor tenta destinar para outro canal ou deixar de produzir porque não tem demanda. Ele inclusive pode vender mais barato do que seria para o PAA ou perder essa produção.
O CONSEA era o principal lugar para debate sobre segurança alimentar. Se estivesse atuante, teria pesquisadores para assessorar o governo federal e trazer esses dados para pensar políticas públicas. Como não existe mais esse intermediário entre a sociedade civil e o poder público, cortou-se o elo de pensar políticas públicas que tenham a ver com a realidade.
A liberação de agrotóxicos no Brasil e os níveis de agrotóxicos, que estão fora do aceitável, era o CONSEA que debatia. No PNAE, por exemplo, em que 30% da alimentação escolar deveria ser proveniente da agricultura familiar, quando havia alguma irregularidade e percalços, era no conselho municipal que se resolvia isso.
O PAA também tinha o papel de regular preço pela compra de alimentos para manter em estoque público. Um resultado visível foi o preço do arroz, tanto por questões agronômicas e por consumirmos mais do que produzimos. Quando o estoque de alimentos ficou menor, não tinha mais arroz [em estoque público para ser colocado no mercado] para regular o preço, e tivemos que importar do Uruguai. Quem lucrou com isso foram três indústrias de arroz que tem no Brasil.
Quando você fala de mercados imersos, a dinâmica que o organiza é pela demanda? Ou demandas, considerando diferentes grupos consumidores?
O mercado imerso é uma instituição social, e nem sempre entra na lógica da remuneração, porque não tem noção de ganho. É reciprocidade, são trocas mesmo. O agricultor tem um pé de manga abundante, não vai fazer falta para ele se ele doar. Tem casos de doação de lenha para as doceiras fazerem o doce no tacho. Essas forças sociais dão coesão à população local e estruturam essa sociedade. É isso que dá a liga do território e permeia as trocas econômicas.
Em todos os arranjos de comercialização que são informais, é muito mais fácil de ver essas dinâmicas. Chamamos de informal só porque não tem prazo, contrato, porque tem menos mediação por instituições, e não é só o preço que media a troca.
O PAA é um mercado que não é territorial, mas muitas vezes acontece a nível de território nacional. Tinha a modalidade de doação simultânea, a compra institucional para escolas e hospitais e para instituições de caridade. Isso é um mercado formal, mas tem uma atuação em nível territorial.
Uma política pública como o PAA era a conexão entre a produção agrícola e a população em vulnerabilidade alimentar. Se tivéssemos uma política pública que mostrasse a ligação entre a terra e o território à comercialização desses produtos, que mostrasse como essa terra foi adquirida, como é o caso do selo da reforma agrária do Movimento Sem Terra (MST), talvez esse fato saltasse aos olhos: de que a comida não vem do vácuo, ela vem de um trabalho na terra. Há pomares [de manga Ubá] que estão sendo reduzidos para plantarem goiaba, por exemplo. É uma terra em disputa.
A gente se refere a essa situação como aperto e pressão econômica. A remuneração fica menor, a demanda também. Eles escanteiam o produtor e a produção diversificada vai perdendo espaço.
Os mercados imersos têm a ver com preservar os modos tradicionais de comer?
Não necessariamente. Você pode estar tratando de produtos convencionais também. A peculiaridade desses mercados imersos engloba arranjos sociais e trocas econômicas. Dentro dessas trocas tem reciprocidade, troca monetária, doação… são diversas as trocas, não se dá só no âmbito da monetização.
A produção de leite por exemplo: pode fornecer para uma grande marca, mas também o pecuarista vai disponibilizar uma quantidade para uma pessoa fazer queijo. Isso é um mercado imerso, mas não tem a ver com um modo tradicional de comer. Dentro disso, pode haver também modos tradicionais de comer.
Apenas alguns pesquisadores estão discutindo esse assunto de mercado imerso no Brasil. Mas a FAO [Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura] já usa o termo mercado territorial. No Brasil, o debate é iniciante, mas já vem da ideia de circuitos curtos.
Há como recuperar a potência do PAA?
Não tenho tanta familiaridade no assunto do PAA, ele foi desmontado em 2016/17. As críticas e problemas foram surgindo com a Operação Agro-fantasma, em que havia a denúncia de cooperativas com notas fiscais superfaturadas. Eram coisas burocráticas. Como o PAA é uma política pública estruturante, ela devia ter um acompanhamento mais próximo.
O PAA funcionava bem apesar dos percalços. Era uma dinâmica de não só comprar alimentos, mas fazia com que as propriedades agrícolas se organizassem de uma maneira completamente diferente.
Os agricultores precisavam de uma assistência maior em papéis e outras coisas, precisaria de um recurso humano para dar conta dessas demandas e dúvidas. Mas depois que estava tudo certo, com apoio e direcionamento, eles conseguiam comprar equipamento, como uma agricultora que comprou uma máquina de vácuo para embalar mandioca. Plantar o pessoal sabe, a questão é essa interlocução com a prefeitura e outros órgãos.
Como a extensão rural pode estar presente nesse setor de pequenos agricultores?
Do que eu vi, em dois anos, e hoje o que vejo na minha área de pesquisa de campo, é que temos pouquíssimos funcionários de extensão rural por região. As Emater [Instituto de Assistência Técnica e Extensão Rural] são órgãos que precisam de recursos humanos e financeiros para dar conta da demanda. Os agricultores participam de diversos mercados. Ele pode produzir soja, e aí precisa de uma variedade bem produtiva e de indicação de agrotóxicos. Mas ele também vai produzir outras coisas, para outro consumo. Pode produzir hortícolas para o mercado local, e aí precisar de assistência para saber como encontrar esse mercado, onde ele vai fazer feira. Quando tem uma família morando na propriedade, ela tem mais diversidade, e isso é maior no cooperativismo. Eles contratam um extensionista para a parte de documentação.
Todas as falas dos agricultores falam sobre ter muito trabalho de mão de obra e que acabam vendendo para Ceasa ou para a agroindústria, e não para um mercado que pague por esse valor agregado.
Por exemplo, os cafés especiais exigem um investimento alto, além de embalagem e de saber para onde vai vender esse produto de valor agregado. O agricultor tem que estar disposto às múltiplas funções, dedicar mais tempo para encontrar o mercado que vai pagar por esse café. E esses produtos especiais só se sustentam porque aquele produto em específico é um de uma série de outros que esse agricultor produz. Sempre há algum nível de diversidade de produção nas propriedades. Se não, eles não continuariam [a produzir algo especial].
Há defasagem de recursos humanos e financeiros. É muito mais fácil ter grande parte da produção voltada para soja, arroz ou fumo, porque é um mercado com documentação padrão.
As plataformas digitais estão vindo muito forte, e novos arranjos vão ser uma realidade muito em breve. Seria interessante que se fomentasse isso, um site que congregasse para o município todos os canais de escoamento possíveis para o agricultor familiar. Na minha pesquisa não teve esse gráfico-esquema de cada produtor e consumidores, mas a Zenicléia Deggeroni defendeu a tese dela em dezembro de 2021 e fez [uma tabela com as tipologias de mercado baseadas em Sérgio Schneider].
Os centros de abastecimento podem ser entendidos como um canal para garantir a segurança alimentar?
A gênese do supermercado é privada. Faz época de promoção, segura produtos, etc. Já os mecanismos governamentais têm um lado mais social. A Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB) dita o preço dos alimentos básicos e praticados pela CEASA. Depende de um contexto territorial, porque é uma central de abastecimento. A partir dele, mercadinhos, feiras e outros vão se abastecer nessas centrais por conta da disponibilidade e do preço. E muitos [CEASA] têm um setor com doação de alimentos. Eles doam para escolas e instituições. Os CEASA são essenciais no sentido de garantir o abastecimento de alimentos. A CONAB não tem mais isso: agora as compras são de menor volume, e antes escoavam pelo CEASA esse volume comprado para equilibrar o preço. Esses organismos têm uma importância na segurança alimentar e na centralização de alimentos de uma região e de distribuí-los.
O que me traz a uma questão que eu gostaria de saber se faz sentido: não é só comprar na feira que garante a existência da agricultura familiar.
Não. Tem feira orgânica, tem lojas colaborativas, o Instituto Chão e o Instituto Feira Livre são muito bons, mas a crítica principal é que se situam sempre nos bairros de alto poder aquisitivo. E nas periferias, o que tem? Os supermercados de grandes redes, feiras distantes dos adensamentos populacionais. Vê-se muita loja de açaí, por exemplo, minimercados. É um fenômeno muito recorrente. Quero estudar esse fenômeno do sistema alimentar de um grande centro urbano.
A existência de feiras na periferia é muito rara e prevalecem os produtos industrializados. Quando você vê isso, começa a pensar de forma diferente. O orgânico não é uma prioridade nesse contexto, a questão é muito mais embaixo.
Sempre haverá alguém para preencher lacunas. A Fundação Getúlio Vargas fez uma plataforma que liga os mercadinhos aos consumidores. O que a gente gostaria era que fosse o Estado dando esse suporte.
Neste momento de uma alimentação altamente individualizada nos grandes centros urbanos e com base em dietas específicas a qual se atribuem valores diferentes para alimentos (ex: pessoas que acham que é mais saudável comer macarrão sem glúten do que comer feijão com arroz), o que se pode fazer para reconectar as pessoas com a comida local nas grandes cidades?
É bem complicado. Na Agronomia a gente discutia educação ambiental. Quem pode discutir isso quando a maior parte tem deficiência hídrica e esgoto não tratado? Há alguns pesquisadores que trabalham esses temas falando de meio ambiente, mercado e alimentação. Como falar isso no centro urbano? Sempre voltamos para aparatos públicos. Penso nas hortas urbanas nas escolas, para todas as faixas etárias, para criar essa consciência do zero aos 17 anos, de que meio ambiente e alimentação estão inteiramente ligados.
Para os adultos, fomentar o debate e relacionar a alimentação com o meio ambiente, que é algo coletivo. Se você pode escolher, também pode escolher como impactar o meio ambiente. Essa é uma grande inquietação minha. Eu fazia uns bicos na feira com os agricultores, e uma vez fui num condomínio de luxo com eles. Eles faziam a feira uma vez por semana lá.
A maior preocupação dessas pessoas [de condomínio de luxo] é que o alimento não tenha agrotóxico. Como você vai falar com essas pessoas sobre consciência ambiental se o próprio modo de vida delas é degradante e do qual não sentem nenhuma consequência?
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