[entrevista: Joana Pellerano] "comer o comestível parece simples, mas comida é uma coisa complicada para caramba"
quem afirma é a comunicóloga, antropóloga, pesquisadora, professora e co-autora do Comida na Cabeça
click here to read this piece in English
[⚠️ aviso: esta edição contém links afiliados, o que significa que eu recebo uma pequena comissão caso você compre o livro indicado 🙃]
Nas duas manhãs de sábado em que fiz o curso Movimentos Estéticos, Movimentos Gastronômicos, de Joana Pellerano, eu segurei o xixi por mais tempo do que o recomendado por urologistas. O motivo é que, como haviam me adiantado, a Joana é capaz de falar 50 palavras por segundo, enlaçando um conceito no outro e tecendo uma linha de raciocínio com incontáveis referências. É impossível ficar um minuto longe do computador; seria o equivalente a perder 300 palavras e todos os sentidos que, juntas, elas constroem.
Motivo pelo qual em menos de seis horas escrevi 11 páginas em caderno universitário e que revi ambas as aulas na semana seguinte para complementar as anotações. Falei consideravelmente durante as aulas também, porque minha língua, ao contrário da minha bexiga, é incontrolável (pensando bem, melhor que seja assim).
Joana é comunicóloga e antropóloga, pesquisadora da área de alimentação e professora da pós-graduação em Gastronomia, História e Cultura do SENAC. Cheguei à ela através de quem? Dela mesma, Bia Nunes de Souza, a mulher que mais conhece e recomenda gente interessante na área da gastronomia.
Em Movimentos Estéticos, Movimentos Gastronômicos, Joana faz uma retrospectiva a partir da obra Estética: de Platão a Pierce, de Lúcia Santaella e, entremeado ao fio histórico, apresenta as transformações pelas quais passaram os atos de cozinhar e comer ao longo dos séculos. Marchesi & Vercelloni, Montanari e Perullo aparecem para desenrolar o novelo e revelam intersecções com os temas identidade, escolhas alimentares, comportamento e construções de significado do comer. Dos autores estimados pelos comunicadores, Bourdieu e Benjamin arrematam o ponto.
A maior contribuição deste curso para quem gosta de pensar comida – não à toa, Joana é uma das das cacholas por trás do site de divulgação científica Comida na Cabeça, no ar desde 2013 – é contextualizar a construção social do gosto em diferentes épocas, evidenciar a complexidade contida nas escolhas do dia a dia (que parecem triviais quando são explicadas como "sempre foi assim") e, claro, mostrar como uma classe dominante dita tendências e diferencia-se a partir do consumo de alimentos.
Foi incrível, portanto, poder tomar uma hora do tempo da Joana para fazer algumas perguntas e também tomar a liberdade de fazer algumas questões estapafúrdias. Abaixo, os principais trechos dessa conversa, editados e organizados para caber neste espaço:
Durante o curso, você disse que a contemporaneidade é uma época em que temos uma miríade de referências, que nem todo mundo está olhando para o mesmo passado. Com essa diversidade, temos como apontar exemplos das estéticas alimentares da nossa época?
O que a gente tem nesse período de pós-modernidade estética é a possibilidade de acessar várias práticas alimentares diferentes, de saber que elas existem e que existe a possibilidade de ouvir outras narrativas, e não só as ligadas às gastronomias europeias.
A possibilidade de termos tantas referências hoje não enfraquece a identidade?
A gente tem uma disciplina na pós que discute exatamente isso [risos]. A gente tem hoje acessos a jeitos de comer; o enfraquecimento das regras da alimentação, que são menos claras; e uma individualização muito grande. São três coisas problemáticas ao mesmo tempo, que faz as pessoas se sentirem livres para tomarem decisões próprias sobre suas escolhas alimentares. Isso não quer dizer que obrigatoriamente há uma perda, porque também há um caminho inverso: conforme vão chegando novidades, as pessoas se sentem impelidas a proteger o que elas têm.
Comida é uma coisa complicada pra caramba. Comer o comestível parece simples, mas os significados que damos à comida são bastantes complexos.
Uma coisa que sempre gosto de frisar é a complexidade do ato alimentar. As escolhas que a gente faz para comer são mais complicadas do que parecem. Quando temos sorte de ter comida disponível e várias vezes por dia, esse assunto fica nos bastidores – todas as decisões, escolhas, trocas e significados da comida. As pessoas que têm o privilégio de comer o que querem e quando querem, que poderiam pensar melhor no ato de comer e nesse significado, não pensam nisso. Se tentassem entender essa complexidade, seria benéfico para todo mundo.
Essa linha de raciocínio de que quem pode escolher o que comer deveria escolher pensando no coletivo é o que eu tentei fazer naquele ensaio sobre vegetarianismo. Agora estou até com medo de reler e encontrar algum furo argumentativo [risos].
A impressão que me dá é que as pessoas focam na complicação errada. Por exemplo: seguir uma dieta vegana. Elas não tentam entender a lógica da dieta, que é comer todas as outras fontes de alimentos que não sejam proteína animal; elas sentem falta de uma orientação objetiva e solução mágica. Aí vão no influencer, porque acreditam que essas pessoas têm um segredo que elas não têm.
O segredo é ter repertório e autonomia. É ter informação o suficiente e transformá-la em conhecimento. Mesmo tendo tudo isso, pode ser que elas não queiram tomar decisões ou tomem as que a gente não acha corretas. Eu tenho a impressão que as pessoas acham que se contar para todo mundo que a indústria alimentícia faz mal, as pessoas vão parar de consumir. Pode ser que parem, mas também pode ser que continuem a consumir e tomem para si a responsabilidade de suas escolhas, por economizar tempo ou por acharem gostoso.
Mesmo que seja difícil elencar exemplos da estética alimentar do nosso tempo, estava pensando se caberia dizer que há uma estética hegemônica a partir de produtos com realçadores de sabor e excesso de sal, açúcar e gordura… Seria a indústria alimentícia uma das vozes mais fortes na narrativa do nosso tempo?
A indústria alimentícia é paradoxal porque ela oferece mais variedade, longevidade de prateleira e a possibilidade de trazer coisas de mais longe. Por outro lado, a indústria faz escolhas baseada em mais lucros e atende a objetivos específicos que não levam em conta a diversidade alimentar, e acaba limitando as possibilidades que a gente tem.
Sempre que há uma ironia ou algo mal explicado em alguma conversa por escrito, eu costumo me perguntar: "será que os arqueólogos do futuro vão entender do que realmente se trata isso aqui?" [risos]. Ou seja, com um volume tão grande de ultraprocessados sendo vendido e propaganda deles por tudo quanto é parte, será que daqui a mil anos as pessoas vão entender que havia muita gente na outra ponta da corda, tensionando esse debate?
[risos] Tudo se trata dos registros e de como eles vão ser interpretados. Não sou arqueóloga, mas eu sei que há uma preocupação em evitar o anacronismo e em entender as evidências dentro do próprio contexto. Eu imagino que é possível entender que essas diferenças existem a partir do que estamos registrando.
É complicada a batalha contra a indústria alimentícia como um todo, desde os que servem comida pronta até os que manufaturam o que vem para dentro de casa. Quando essas coisas surgiram, a intenção era oferecer mais comida e com uma base nutritiva. Têm a intenção de padronizar a produção de modo que não o produto não vá fazer mal para as pessoas. Um fast food com muito realçador de sabor, sal, gordura, é a oferta de uma opção de comida e de sabor forte e perceptível – não vou falar se bom ou ruim –, que fica pronto rápido e é barato. Uma coisa assim revoluciona o mercado. As pessoas entendem que é algo saboroso, barato e fica pronto rapidamente.
Temos um ponto de crítica muito importante à indústria alimentícia, porque ela ainda precisa mudar muito para oferecer algo benéfico. Ela traz algumas potenciais vantagens para as pessoas, mesmo que nós que estudamos alimentação achamos que não é uma vantagem. A indústria não cria uma lacuna de mercado, ela aproveita a lacuna existente e dentro disso, pode resolver uma necessidade ou criá-la. Mas a lacuna estava lá. O que a indústria oferece e que as pessoas apreciam, no geral, é economia de tempo, um atalho, um prato pronto ou, no mínimo, um ingrediente pré-processado, minimamente processado. Enquanto cozinheiro doméstico, a indústria te economiza tempo e o fato é que as pessoas precisam de economia de tempo. Cozinhar talvez nem devesse ser a tarefa a ficar a segundo plano, mas tem pessoas que não têm escolha.
Isso nos traz à uma questão que eu queria muito fazer durante a aula, mas não deu tempo. Que é: o leite condensado e a criação do brigadeiro, e o impacto desse produto na cozinha brasileira. Eu acho impossível ser contra o brigadeiro, tem mais lados para analisar nessa história, certo?
O brigadeiro é criado por causa do leite condensado ou logo depois que o leite condensado é criado. A receita tradicional nasce com esse produto industrializado. As pessoas tendem a pensar que o leite condensado é um problema porque ele substituiu variações e receitas que existiam na doçaria brasileira, como por exemplo os pudins. Tinha pudim de tudo quanto é jeito. E aí virou só um pudim de leite. Isso é um problema porque perdemos variedade e sabor, mas a receita com leite condensado era prática, barata e dava certo. Economizava tempo, dinheiro e frustração, por isso o pudim de leite condensado alcançou um espaço no imaginário nacional.
Antes, você tinha dezenas de pudins, tinha as variações próprias de cada cozinheiro. Um pudim de laranja, por exemplo, cada um fazia de um jeito diferente: com mais suco, mais açúcar, um media com pires, outro com copo. Depois que o leite condensado toma essa parte do receituário, ela traz um padrão e a própria lata passa a ser usada como medida. A Débora Oliveira pesquisou isso no mestrado, e a dissertação dela virou um livro: "Dos cadernos de receitas às receitas de latinha: Indústria e tradição culinária no Brasil".
As receitas de hoje em dia são descritas nos mínimos detalhes, mas naquela época [século 19 e início do 20], o registro das receitas era para pessoas que sabiam cozinhar. A receita era um lembrete, não se precisava de uma orientação detalhada. As pessoas hoje acham que as receitas eram escritas assim porque não se queria passar "o segredo", e acredito que isso seja um anacronismo nosso. Naquela época, as pessoas usavam seu próprio conhecimento para dar o ponto certo, para saber "o quanto basta" desse ou daquele ingrediente.
Elas se valiam da construção de repertório e de conhecimentos culinários, que hoje não temos mais tanto: as pessoas não têm autonomia para ler uma receita e pensar a quantidade de um ingrediente e o ponto que se espera.
Antes da industrialização da alimentação, houve alguma transformação equivalente, que alterou a estética do que comemos?
As grandes navegações alteraram bastante o jeito de comer. Primeiro com as pessoas mais privilegiadas, que era quem conseguia ter acesso às especiarias e ingredientes, mas no longo prazo alterou totalmente. É só pensar numa Itália sem tomate, que é uma planta americano. Outra questão é a Revolução Industrial, que mudou até a agricultura, o nosso modo de cultivar comida. Há uma aceleração na sociedade e essas alterações são rapidamente incorporadas, então o efeito é percebido mais no curto prazo.
Preciso te fazer uma pergunta que já discuti com um amigo, mas não me lembro se chegamos à alguma conclusão. É a seguinte: um prato de comida pode ter aura, conforme o conceito de Walter Benjamin? Pergunto porque, atualmente, entendemos que a alta cozinha tem uma excelência nos pratos que constrói e apresenta, mas para que ele seja experimentado de fato pelo sujeito, precisa ser repetido. E uma obra de arte reproduzida em escala faz com que seu valor intrínseco diminua… fico em dúvida, inclusive, se seria possível aplicar o conceito de aura para comida, porque não há como proporcionar a experiência sem necessariamente reproduzi-la.
Pois é, você respondeu. A reprodutibilidade já está inserida no sistema de produção de um prato de comida. Você não constrói pratos na gastronomia para serem diferentes. Mesmo com restaurantes que fazem comida com o que tem no mercado, como buffets, o cardápio muda toda semana e, quando repete o ingrediente, a mesma receita acaba ficando diferente.
Há uma tiragem limitada de cada ingrediente, digamos, mas a reprodutibilidade do prato faz parte do funcionamento do restaurante. É uma discussão interessante. Mesmo que a produção cause uma reação na pessoa, não sei se dá para garantir que em algum momento pode ser comparável a observar a aura.
O dadinho de tapioca é uma coisa que tem um ou outro registro anterior à inclusão do preparo no cardápio do Mocotó [do chef Rodrigo Oliveira] e a partir de quando o Rodrigo Oliveira começa a servir, passou a ser feito no Brasil e no mundo. Tem massa de dadinho até industrializada! A Adriana Salay, que é pesquisadora e casada com o Rodrigo, fala que qualquer dia ela vai abrir o instagram e ver uma Dadinharia, que venderá todos os sabores possíveis de dadinho de tapioca [risos]. Esse é o momento que estamos vivendo. A comida tem sido mais moda que artes plásticas. Ela vai sendo usada, reproduzida e entra na vida das pessoas, mesmo que de segunda, de quinta mão.
A escolha da feijoada como prato representante da identidade do brasileiro a partir da ideia da "união das três raças" levanta várias questões, especialmente neste momento em que tentamos trazer interseccionalidade a todos os debates e fazer uma leitura a contrapelo da história colonial, que apagou culturas de povos originárias e de povos escravizados. Nesse contexto, seria possível escolher um prato ícone para qualquer país?
Geralmente quando se tenta escolher representações, o que se faz é um recorte. Sempre haverá algo deixado de fora. Quem faz essas escolhas são as classes dominantes e que têm poder de influência na sociedade. Nem sempre esse poder é político ou econômico, mas às vezes são todos eles juntos.
A feijoada é adotada justamente numa tentativa de incluir quem estava excluído até então. É uma maneira bastante condescendente para tentar compensar a falta de poder político que essas populações tiveram dando esse poder cultural, digamos. Como se dando esse poder cultural fosse possível apagar tudo de mal que foi feito a essas populações. A escolha é feita de modo aleatório e não de acordo com o que os povos identificam que sejam contribuições importantes de suas culturas.
A coisa da representação nacional é difícil porque como você pode encontrar algo que represente tanta coisa no Brasil, um país desse tamanho, com tanta gente vivendo, falando e comendo de maneiras tão diferentes? Mesmo a feijoada, que é preparada em tantos lugares no Brasil, é feita de jeitos diferentes: tem com verdura, com frutos do mar, com carne de porco, com carne de boi. Mas tem uns símbolos que são reconhecidos como brasileiros no Brasil todo, mesmo que algumas pessoas não se vejam representadas nele, como por exemplo arroz e feijão. A farofa também, mas sua base muda: em alguns lugares vai ser de milho, outras de mandioca.
A Paula Pinto e Silva tenta encontrar esses ingredientes e modos de comer no livro "Farinha, feijão e carne seca: Um tripé culinário", em que ela vai falar desses três ingredientes e de suas variações, como variedades diferentes de leguminosas no lugar do feijão, a farinha de mandioca ou de milho com diferentes tipos de beneficiamento, e a carne seca, que é a proteína, e que pode ser charque, carne de sol, camarão seco ou até dry-aged [risos]. Olhando por essa tríade você consegue abarcar mais gente.
Mas as cozinhas nacionais são sempre escolhas, e quase sempre uma escolha política cujo objetivo é unir as pessoas em torno de algo comum. É uma simbologia visando a união.
[aliás, neste mês houve dois lançamentos de livros sobre farofa]
Você tem uma sugestão de entrevistado para a FOGO BAIXO? Me escreva! schiochetflavia@gmail.com
PRIMEIROS FRUTOS
O ano vai chegando ao fim e eu começo a pensar que tanta coisa aconteceu mesmo a gente tendo ficado preso em casa! Uma das minhas grandes conquistas esse ano, sem dúvidas, foi tirar do papel o curso Como Escrever Sobre Comida, que teve 80 alunos.
Uma delas foi a Nila Picarelli, que começou uma newsletter em setembro e também fez parte do Clube da Escrita Gastronômica. Obrigada pela confiança, Nila! Recentemente ela publicou o ensaio pessoal que começou a esboçar durante os nossos encontros, e considero esse texto um símbolo do que eu mais gostei de fazer nesse 2021: ajudar as pessoas a sistematizar seus processos criativos para escreverem com periodicidade.
Para 2022, quero fazer o mesmo para turmas pequenas ou como mentoria individual. Se você quiser saber mais, me escreva: schiochetflavia@gmail.com 🍀
IDEIA NATALINA
Eu sempre falo que você pode apoiar financeiramente a newsletter por R$ 10 (mensal) ou R$ 100 (anual) para aproveitar descontos nos cursos que ministrarei em 2022; participar de encontros virtuais mensais para discussão do tema mais recente da fogo baixo; e ganhar um agradecimento público no rodapé de cada edição.
Você também pode pagar este apoio como presente para alguém que gostaria de ter acesso e de participar desse circuito. Que tal? Essa é a ideia da assinatura-presente, e é bem fácil de fazer. Só clicar aqui:
Psiu: caso você queira contribuir de outra forma, divulgue a fogo baixo. Seu compartilhamento vale muito!