#5 | o vegetarianismo enquanto estética alimentar
sobre soluções individuais e a falta de visão sistêmica na dita alimentação ética
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Em 2013, propus um blog para cobrir a alimentação vegetariana fora de casa para a Gazeta do Povo, lugar em que eu trabalhava há um ano como freelancer. Eu havia acabado de ser contratada como repórter da revista Bom Gourmet e completava pouco mais de um ano morando em Curitiba. Entre a data da mudança para a capital paranaense e a redação da proposta de blog, eu dei os meus primeiros passos na cozinha vegana, curiosa pelo desafio de aprender a fazer bolos e tortas sem manteiga, uma alteração que hoje me parece simples.
Curitiba se mostrou um oásis de preço e de variedade para mim, que vinha de cinco anos morando em Florianópolis, onde eu só conhecia champignon em conserva. Em Curitiba, uma bandeja com 300 gramas de cogumelos Paris custava R$ 4,50 no sacolão mais próximo – branquinhos, firmes e desprendendo seu leve aroma terroso. De 2012 em diante, minha alimentação passou a ser muito mais fresca. Em vez de concentrar as compras no supermercado uma vez por mês, eu passei a comprar apenas o que eu precisava, quando eu precisava, nos comércios próximos de casa. Eu, que não comia carne com frequência por economia, parei de vez de prepará-la em casa.
O blog foi aprovado alguns meses depois e o Verdura sem Frescura entrou no ar em setembro de 2013, dias antes da realização do maior evento vegetariano da América Latina, o congresso VegFest, no campus de Agronomia da Universidade Federal do Paraná. Naquele mesmo ano, dois estabelecimentos veganos haviam inaugurado no centro de Curitiba, a lanchonete Semente de Girassol, em março, e o empório Veg Veg, em maio.
Esses dois lugares abriram as portas para muitos empreendimentos e mudanças no cenário de alimentação fora de casa que se desenvolveu em Curitiba. Documentei parte desse processo no blog e, em 2016, estudei o período em meu mestrado. O pequeno mercado que começava a se formar no Brasil era impulsionado, a princípio, por cozinheiros amadores, com poucas horas de cozinha, e que atendiam a uma demanda represada e pouco exigente.
Se até a primeira década de 2000 o que havia para se comer sem carne fora de casa eram os buffets vegetarianos no almoço e os salgados de queijo e palmito das cantinas, o compartilhamento de receitas facilitado pela internet fez com que muita gente passasse a preparar substitutos de carnes, laticínios e ovos do zero em casa. Uma infinidade desses preparos caseiros foram postos à venda, o que ajudou a reforçar o estereótipo de que o vegetariano se alimenta de um simulacro de comida.
Em meio a essa aceleração de consumo e de pouca complexidade na elaboração, houve dois momentos interessantes que registramos em reportagens no Bom Gourmet: em 2015, o setor de restaurantes em Curitiba evoluía para uma cozinha vegana profissional, que arrefeceu poucos anos depois. Naquele período, começava a despontar uma questão que se tornou incontornável e que acabou se tornando central no debate: a "carne de laboratório".
Na primeira aula do curso Como Escrever Sobre Comida, eu começo falando que todos comemos e contamos histórias há milênios. Poupo os alunos e pouparei você, leitor, de ouvir pela enésima vez que saber e sabor têm a mesma raiz etimológica, e pular diretamente para a afirmação: se a língua é viva, a cozinha também o é. Quando escrevi sobre isto em minha dissertação, buscava na proposta de Massimo Montanari uma justificativa para a nomenclatura adotada pelos vegetarianos para uma receita tradicional sem carnes, como feijoada vegana. O raciocínio é o seguinte: se o preparo usa as mesmas técnicas, o jeito de servir, os rituais de comensalidade e a ocasião, então a adaptação é uma expressão válida da cultura alimentar vigente, mesmo que um dos ingredientes não esteja presente. No caso da feijoada, as carnes.
Montanari considera que o léxico do modo de comer de um povo (ou seja, o conjunto de práticas) é composto por ingredientes animais e vegetais (análogos aos morfemas) disponíveis na região. A construção dos pratos (formação de palavras) se daria pelo uso de métodos de cocção e preparação. Assim, uma mesma base pode se transformar em preparos com aspecto e função distintos. Uma torta e um pão são exemplos disso: ambos os preparos compartilham da raiz etimológica farinha de trigo, mas são coisas distintas. Para avançar brevemente neste raciocínio, destaco este trecho de minha dissertação:
A retórica seria como esta comida é preparada, servida e consumida. A força de expressão da comida, assim como da língua, é a adaptação do discurso ao argumento. Desta maneira, a substituição de um ingrediente (morfema) em um prato (palavra) – seja por necessidade, seja uma alteração arbitrária – garante a continuidade do sistema.
Assim como a língua tem suas variações em diferentes regiões e estas diferenças não excluem o diálogo, o mesmo vale para o modo de comer. Se a morfologia do alimento é respeitada, então ele cumpre sua função: um exemplo seria um purê de aipim ou um purê de batata, onde o aipim e a batata fazem as vezes de morfema e o purê seria a palavra.
Em tempos de escassez de cereais, os camponeses aumentavam a massa de pão com terra e, mesmo assim, o preparo chamava-se pão. Para uma cultura onívora em que a carne é um dos principais morfemas, a troca deste ingrediente por outro que cumpra a mesma função pode ser observada na alimentação vegetariana: no hambúrguer (modo de preparo e apresentação do prato) de carne bovina (morfema), pode-se usar leguminosas como lentilha (morfema) ou cogumelos (morfema), entre outros ingredientes. A retórica da cozinha vegetariana é idêntica à onívora: costumes como churrasco e feijoada seguem ligados ao modo de preparo específico e à situação e ritualização que envolve os comensais. É como se a substituição de proteína animal por ingrediente vegetal fosse um neologismo sinônimo: moqueca de palmito, hambúrguer de lentilha, feijoada de legumes, brigadeiro de leite de coco, barreado de proteína texturizada de soja, coxinha de jaca.
À época, não cabia discutir a estética das escolhas alimentares, mas este sempre foi o tema que mais me interessou em gastronomia. Considero estética todas as informações sensoriais de um preparo que tenham sido intencionalmente desenvolvidas pelo cozinheiro a partir do que ele tem em mãos. Assim, as informações sensoriais de um tomate são provenientes de suas características naturais, enquanto as informações sensoriais de um molho de tomate – sabor, aroma, textura, cor, significado – foram criadas com uma intenção estética.
O vegetarianismo, que se vale de decisões éticas para compor suas estratégias alimentares, está sempre a perigo de se deixar levar pela funcionalidade de uma substituição vazia de significados. A proteína texturizada de soja talvez seja a mais conhecida dessa armadilha: subproduto industrial da extração de óleo da leguminosa, a massa de soja não é um alimento intencionalmente produzido. A PTS só está na gôndola dos supermercados (e na ração do seu animal de estimação) porque é conveniente vendê-la.
A CRISE É ESTÉTICA
Fui vegetariana por cinco anos. Vivi todas as fases: o descobrimento de novos sabores, o julgamento, o entusiasmo ao cozinhar, os conflitos à mesa, os testes que dão errado, o proselitismo. Vivi a curiosidade e a expectativa de experimentar embutidos e queijos veganos, provar bacon vegetal, fazer cachorro-quente com salsicha de soja – talvez a mais honesta das adaptações, já que a própria salsicha animal é um simulacro de comida.
Adaptações que simplificam um preparo, achatando seus valores nutricionais, históricos e sensoriais, são práticas para tempos de escassez. Uma receita que leva polvilho, corante e batata pode fazer as vezes de um ingrediente que derrete sob calor, mas não é queijo. Ser queijo, no raciocínio que sigo a partir de Montanari, é ser uma massa com gordura e proteína, fermentada ou curada, a ponto de desenvolver aromas, sabores, consistência e uma nova aparência.
Os camponeses que acrescentavam terra para fazer render a massa de pão não o faziam por prazer: se pudessem, misturariam outros cereais ao trigo. A aplicação de uma técnica de cozinha para emular uma textura ou para que se cumpra uma função no prato é diametralmente oposta a (mas tão limitante quanto) enxergar na comida apenas calorias. Optar por um desses pólos resseca toda a suculenta discussão que fica entre eles.
Banana, jaca, carne de caju, coco verde: a polpa (e casca) destas frutas está presente em cozidos, moquecas, refogados e marinadas de povos tradicionais muito antes de o vegetarianismo ser uma tendência de mercado. Sua disponibilidade para a coleta e cultivo faz com que seu uso tenha sido múltiplo no decorrer da História, e seu preparo varia de acordo com a variedade, ponto de maturação e conhecimento culinário de quem o cozinha. A comida de verdade contém mais histórias do que conseguimos registrar.
A transição para uma dieta sem carne, laticínios e ovos pode ser difícil até o palato acostumar com sabores que têm menos gordura e uma intensidade menor de glutamato livre por bocada. A silhueta faltante de uma peça de carne no prato e a ausência da resistência que o tecido muscular oferece aos dentes, arrisco dizer, deve ser o que faz com que muita gente opte por produtos meramente cenográficos, como hambúrgueres de proteína isolada de leguminosa, embutidos de glúten e queijos de batata com polvilho.
Cozinheiros amadores prepararam seus melhores mockups; a indústria, de olho no mercado mal preparado, capricha na lábia e na embalagem. Ambos entregarão algo que deixará a desejar esteticamente, mas que serão consumidos como se fossem melhor que nada por pessoas que não sabem cozinhar e que acreditam estar contribuindo para um futuro melhor para o planeta. No entanto, as ações ativas – escolher o que o comer por suas características estéticas e produção ética – são mais eficientes que as passivas – substituir um produto que fira seus princípios éticos por um que seja esteticamente inferior e cuja ética também pode ser questionável.
Na década de 2010, o mercado brasileiro foi inundado por produtos plant-based. Eu provei boa parte do que foi lançado durante os anos – mesmo depois que voltei a comer carne – e, apesar da fachada montada com saborizantes e realçadores de sabor, logo se vê uma estrutura fraca e comprometida, histórica e nutricionalmente falando.
Uma alimentação ética nunca é resultado de uma conduta individual, e muito menos é mediada pela indústria de alimentos ultraprocessados. A alimentação é uma expressão cultural dentro de um sistema alimentar construído histórica e socialmente, com suas limitações e possibilidades. Quando a indústria de alimentos senta à mesa para servir suas novidades, ela as serve com uma cobertura extra de greenwashing para disfarçar o cheiro acre decorrente de suas cadeias de produção pouco sustentáveis.
Não quero, com essa comparação, diminuir a estratégia plástica alimentar feita durante a transição para o vegetarianismo; eu mesma recorri a essas práticas muitas vezes. Mas, se temos capacidade de criar alimentos manipulando moléculas através da bioengenharia, temos também criatividade para adaptar uma dieta sem projetar um holograma de hambúrguer, bife, asinhas e costelas no prato. É possível acrescentar gordura, aroma defumado e gosto umami deixando plantas serem plantas e não as fantasiando de bicho.
O léxico alimentar brasileiro é bastante rico em bolinhos, cozidos, guisados, frituras, mingaus, pãezinhos, fermentações, conservas. Há repertório de técnicas suficientes para misturar batata e polvilho e obter resultados diferentes e igualmente interessantes que não simulem queijo derretendo. Me incomoda ver que ainda há escolhas alimentares vegetarianas meramente plásticas – visuais e táteis, mas inertes – e a comparação que me vêm à mente são cirurgias de implantes: o resultado à primeira vista pode ser satisfatório, mas é uma ilusão. Não há estrutura construída e por isso mesmo, é provisória e frágil.
Quando o vegetarianismo não leva em conta o sistema alimentar que produz seus substitutos de carne ou de outros ingredientes de origem animal, ele duplica o problema. Entendo o raciocínio que diz que, se parássemos de comer animais massivamente, a pecuária seria desestimulada e, com isso, diminuiria nosso impacto sobre a Terra. Mas a indústria alimentícia, definitivamente, não pode ser a substituta para tomar o espaço do pasto ou da granja.
Talvez eu esteja atrasada ao publicar esse texto no apagar das luzes de 2021. Preciso ser honesta: meu algoritmo do Instagram tem me entregado perfis e postagens interessantes sobre alimentação vegetariana no último ano. Os ministrantes do grupo de estudos As Cozinhas Regionais no Brasil são o melhor exemplo disso: cinco cozinheiros vegetarianos que apresentam suas regiões sob uma perspectiva original, expondo de maneira crítica informações históricas, lançando um olhar mais atento a técnicas e preparos de povos originários e quilombolas, e apontando caminhos para uma alimentação vegetariana mais próxima de nossas origens. Sem proselitismo.
Parabéns a Malu Cerise (Comendo Plantas), Bruna de Oliveira (Crioula Curadoria Alimentar), Carol Dini (Cebola na Manteiga), Ruan Félix e Marcella Cabral.
NOVO CURSO: LEITES VEGETAIS PARA CAFETERIAS
[assim como outras coincidências da minha vida (eu diria até ações coordenadas inconscientemente), calhou de eu escolher falar sobre vegetarianismo e ter um curso relacionado ao tema para anunciar]
O curso Leites Vegetais para Cafeterias começou em 2019 como um workshop na Argenta Cafés e teve duas turmas presenciais. Para esse ano, preferi fazer uma turma on-line, primeiro porque prefiro que a vacinação avance um pouco mais para nos reunirmos fisicamente; e segundo porque meus cursos este ano tiveram uma participação muito maior de pessoas de fora de Curitiba, e acredito que o mesmo poderia acontecer com esse curso.
Será no domingo, 28 de novembro, das 10 às 13h, via Zoom. Os ingressos estão à venda pelo Sympla. Vou fazer a transmissão diretamente do balcão de cafeteria da Argenta e na parte da aula em que falaremos de vaporização e de montagem de bebidas, conto com a ajuda do meu amigo barista Ewerton Gomes, ex-colega de mestrado e um dos criadores do CWB Coffee.
Não é preciso ser barista ou dono de cafeteria para participar do curso, mas é preciso ter curiosidade e interesse pelo mundo das bebidas especiais. Profissionais da área de cafés terão mais insights de como aplicar na prática o conteúdo do curso, mas eu sou da opinião de que quanto mais soubermos sobre tudo o que consumimos, melhores escolhas faremos. Por isso encorajo você, leigo, a entrar nessa turma!
Sei que a degustação parece a coisa mais importante quando falamos de comida, mas eu tento trazer nos meus cursos o conteúdo que eu gostaria de ver e ir além do repasse de receitas e fórmulas prontas. Vou mesclar teoria e prática, História e dicas, coisa séria com meme, olha só:
o preparo de leites vegetais caseiros com as proporções de água que prefiro para cada tipo de castanha;
similaridades de composição e de comportamento dos leites animal e vegetal;
o que muda no cenário da cafeteria com a entrada de leites vegetais industrializados – e o que eles têm de diferente dos leites caseiros;
os princípios de vaporização e o que é preciso ter em um leite para que ele forme a espuma (spoiler: não é gordura);
panorama histórico do uso de leites animal e vegetal e mostrar que moer uma semente para diluí-la em água é mais antigo que o advento da prensa de Gutenberg;
as características sensoriais de diferentes oleaginosas e sementes;
estratégias para ampliar o uso de leites vegetais em bebidas de cafeteria pensando na ESTÉTICA, ou seja, no sabor, na textura e nas notas que esses leites podem acrescentar aos preparos;
dicas para armazenar, estocar e comprar matéria-prima, e o que mais os inscritos quiserem saber.
Aliás, fiz uma live (40 minutos) falando sobre o uso de amêndoas, coco e amendoim em diferentes culturas alimentares e como seu uso persiste – é alterado – volta a ser o que era ao longo dos séculos.
Os ingressos para o curso Leites Vegetais para Cafeterias ainda estão em primeiro lote e saem por R$ 80. O valor inclui uma apostila ilustrada com referências bibliográficas para você expandir seus estudos.
OBRIGADA!
Enquanto escrevo esta edição, a fogo baixo está com 529 assinantes, ou seja: bati minha meta pessoal de atingir os 500 inscritos antes de 31 de outubro. Isso significa que novembro terá um post extra!
Muito obrigada a cada um de vocês que assinaram a fogo baixo no último mês ou que permanecem por aqui. Ser uma profissional autônoma e publicar um projeto pessoal desse tamanho (pequeno na internet, mas trabalhoso enquanto atividade individual) significa comemorar cada visualização de página e nova assinatura com a mesma intensidade. Comentários e compartilhamentos, então, são sinônimo de abrir espumante.
Devo um agradecimento especial aos que contribuem financeiramente – a partir desta edição, seus nomes estarão no rodapé. Caso você prefira que conste o nome da sua empresa ou que seja linkado alguma URL, me avise. 🙃
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um encontro virtual mensal para discutirmos o tema da edição mais recente.
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NOVA META
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Olá Flavia! Acabo de descobrir a sua newsletter e amei este texto. Traduz perfeitamente alguns dos meus maiores incômodos como vegetariana estrita (ou vegana). Passei boa parte da minha vida entre idas e vindas com minhas escolhas alimentares e as minhas razões para ser vegetariana se tornaram mais abrangentes e não tão pessoais. E se nas décadas de 70, 80 era difícil manter uma alimentação sem proteína animal (principalmente fora de casa), hoje é quase um ato heróico ser vegetariano e ficar longe de tanto produto industrializado.
Que interessante esse texto, Flávia! não sou vegetariana mas tenho pesquisado muitas receitas assim e veganas apenas pelo fato de que conseguem dar mais sabor aos vegetais. Cresci numa cultura do brocolis cozido na agua e servido no self service que me afastou muito de uma alimentação saudável e me recuso a ter uma que seja completamente sem sabor, ainda mais com tanto conhecimento disponível hoje.