[entrevista: Antônio Barbosa] sementes crioulas resistem ao desmonte do Brasil
selecionadas e plantadas por famílias do semiárido, sementes garantiram alimento e sustento após seca histórica e durante o pior período da pandemia de Covid-19
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A edição de hoje inaugura uma seção nesta newsletter: as entrevistas mensais. Gostei do formato quando publiquei a conversa com a Lourence Alves, em agosto, e dentro da estratégia de aumentar a frequência de publicação da fogo baixo, passarei a publicar uma entrevista no dia 15 de cada mês e um ensaio nos moldes do que vocês têm lido nos dias 30 ou 31.
E tem outra novidade: agora a designer Marina Kinas vai colaborar com uma ilustração por edição. Não é incrível? Sempre fui fã do trabalho da Marina e nos conhecemos ainda na adolescência, antes de prestarmos vestibular. Obrigada por querer estar por aqui, Nina!
Tenho que agradecer publicamente, inclusive, à Luciane Maesp, que começou a traduzir as edições em setembro (esta e esta) após ter lido a entrevista que fiz com Lourence. Aos poucos, a fogo baixo vai formando uma equipe (!).
Ainda faltam umas dezenas de pessoas para eu bater minha meta de 500 inscritos até 31 de outubro. Se eu conseguir, prometo um conteúdo extra para novembro. 🤞
SEMENTES CRIOULAS RESISTEM AO DESMONTE DO BRASIL
selecionadas e plantadas por famílias do semiárido, sementes garantiram alimento e sustento após seca histórica e durante o pior período da pandemia de Covid-19
No final de setembro participei do evento Explorando Pautas Alimentares, da Agência Bori, e lá conheci Adriana Amância, assessora de imprensa da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA). Em uma de suas falas, Adriana mencionou um dado impressionante: 70% das famílias do semiárido brasileiro que estocam e plantam sementes crioulas mantiveram o volume normal de produção de alimentos mesmo durante o período mais crítico da pandemia de Covid-19.
Este é um dos resultados da pesquisa realizada pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO–ONU) e ASA entre julho e dezembro de 2020 com uma amostra representativa das 200 mil famílias atendidas pelo programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2) da ASA. O programa acrescenta uma cisterna para uso de água para produção de alimentos a famílias que possuem uma cisterna para armazenar a água para usar em higiene e limpeza em casa, construídas pelo Programa 1 Milhão de Cisternas, do governo brasileiro.
Por isso quis conversar com Antônio Gomes Barbosa, sociólogo, mestre em agroecologia, coordenador do DAKI – Semiárido Vivo. Ele coordenou o Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2) e o Programa Sementes do Semiárido, ambos da ASA.
Foram entrevistados moradores do semiárido em nove estados brasileiros: Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia e Minas Gerais. A região sofreu com a pior seca já registrada entre 2012 e 2018 – em alguns lugares, a seca começou em 2010; em outros, estendeu-se até 2019 – e na sequência teve de lidar com a pandemia do novo coronavírus.
A pesquisa tinha como objetivo medir o impacto que o isolamento social e o fechamento do comércio teve na vida dessa população. A maior parte dos entrevistados é mulher, tem entre 40 e 50 anos, mora com mais de três pessoas, possui cisterna para uso na casa e para o cultivo, plantam principalmente cereais, oleaginosas, frutas, verduras, tubérculos, mas também flores e outros cultivos comerciais. Há também a criação de animais em pequenos rebanhos, para subsistência.
O P1+2 é um programa da ASA iniciado em 2007 com o objetivo de garantir o acesso à água para plantação e pecuária a famílias que já estejam atendidas com acesso à água para beber. "O que a pesquisa mostra é que o programa de acesso à água para beber e para produção faz as famílias mudarem de condição: deixam de ser famílias que precisam ser assistidas por programas de distribuição de renda para serem famílias que produzem alimentos e geram riqueza para a região", diz Barbosa.
Os principais obstáculos que se impõem sobre essas famílias não é o clima do semiárido, e sim a falta de investimento do Estado em cisternas e outras estratégias que permitam estocar água; a descontinuação de linhas de crédito que eram contratadas pelas famílias para investir na propriedade e melhorar sua produção; e a monocultura de transgênicos na região, que acaba contaminando as roças e canteiros de sementes crioulas com a propagação de seu pólen.
"É preciso retomar a caminhada do que chamamos de ação de convivência com o semiárido", resumiu Barbosa em sua última resposta. Ele respondeu em áudio uma série de perguntas que lhe enviei por WhatsApp, e a entrevista abaixo está organizada e editada para melhor compreensão.
Quando falamos de sementes crioulas no semiárido, temos como exemplificar as principais espécies e explicar como se faz esse trabalho de seleção, guarda e troca de sementes?
São muitas espécies. O feijão é uma das espécies e essa espécie tem variedades. Melancia é a mesma situação. No semiárido, tem variedades de feijão e milho em maior quantidade, mas também favas, tubérculos e um conjunto de outros materiais genéticos que as famílias guardam para plantar de novo. Fizemos uma pesquisa com famílias do programa de sementes do semiárido brasileiro, e a maior parte das sementes guardadas por elas são da própria família através dos anos. Depois, vêm os materiais adquiridos da comunidade, ou seja, de outra família.
Quando falamos de semente crioula não estamos falando só questão genética, estamos falando inclusive de serem plantas adaptadas ao clima e também do conhecimento agregado àquele material que as famílias mantêm: qual o melhor lugar para plantar, se deve ser plantado consorciado, qual o tempo correto para plantar, o que não se deve fazer.
As famílias do semiárido só plantam quando há chuva e aí separam as sementes entre o grão que é alimento e o que será guardado como semente. É uma tradição de muitas famílias agricultoras de todo o Brasil. Os agricultores do semiárido foram perdendo suas sementes, houve uma erosão genética. E, mesmo assim, eles montam suas estratégias: em vez de plantar no roçado, plantam no quintal para produzir sementes. Para a nossa grata surpresa, a pesquisa mostra que quem guardou as sementes teve mais autonomia. Num período em que estava tudo fechado, até pra acessar sementes [de outros lugares, como empresas e cooperativas] era mais difícil.
Quem mora no semiárido sai da região quando não é época de chuva. Vai para o Norte, Sudeste, Sul, e se ele vê uma semente que não conhece, traz junto na volta. Isso faz com que o semiárido possivelmente seja a área mais biodiversa no campo de sementes do país. Os agricultores plantam essas novas sementes em pequena quantidade e vão testando e construindo o conhecimento. A troca acontece muito também: se um vê um feijão, planta e dá uma semente para outra família. Também há sementes crioulas que não são vegetais, como os caprinos – 93% do rebanho de caprinos está no Nordeste e maior parte dos rebanhos do Nordeste está no semiárido.
Estamos falando de 1,1 milhão de famílias cuja base está em guardar, proteger e trocar, testar e adaptar sementes crioulas. É um trabalho que acaba sendo também um serviço ambiental. Só o milho [tem uma história de cultivo de] uns seis mil anos sendo selecionado. A seleção massal [feita a partir do fenótipo, ou seja, das características visíveis da planta ou animal], em que selecionam manualmente – "opa, esse grão é melhor que esse outro, então vou separar" – é um trabalho manual de cuidado e de conhecimento associado que é algo grandioso e encantador.
Adriana havia mencionado que as sementes crioulas de milho da região do semiárido correm o risco de serem contaminadas pela transgenia. Quais são os estados e regiões que essas plantações estão ameaçadas e que medidas a sociedade pode tomar para apoiar o pequeno produtor?
Hoje a principal ameaça é a contaminação dessas sementes por transgenia, sobretudo o milho. Na ASA, fizemos testes de contaminação e os números foram aumentando com o passar do tempo. Atualmente estamos com ASA e Embrapa juntas no programa que se chama Agrobiodiversidade do Semiárido [lançado em 2019 com 53 municípios nos estados de Sergipe, Bahia, Paraíba, Pernambuco e Piauí], que trabalha em sete territórios. Não existe nenhum estado do semiárido que não tenha contaminação, que acontece das mais variadas formas, ora distribuído por casas de sementes.
Existe muito material transgênico e o pólen do milho é o que tem a propagação mais fácil. Em todos os lugares e regiões, tem material que está de 60 a 100 anos na família sendo contaminado. Não há no Brasil nenhuma política de proteção aos agricultores e de seus materiais. Não existe política de punição das empresas que contaminam, porque hoje se consegue saber que empresa produziu aquele transgênico. A política do Brasil hoje em dia é de ampliação da transgenia com tudo o que ela tem direito.
O Estado promove uma política distributiva de sementes e não de incentivo à produção de sementes, de estocagem e de valorização do material genético local.
Temos trabalhado com políticas de proteção para esse material, para que os agricultores colham, façam testes de transgenia e não plantem aquelas sementes no próximo ano. Aí plantem uma parte e façam o teste de novo: se estiver contaminado, guarde o primeiro material e recoloque-o.
A principal cultura do semiárido é o milho, que representa toda uma lógica de divindade e de celebração, e esse material em grande parte está contaminado. Estamos construindo alternativas com a Embrapa como perspectivas de como proteger esse material, discutindo com as casas de sementes, construindo cópias de segurança desse material genético.
A pesquisa mostrou que produtores com acesso suficiente a insumos, extensão, crédito e serviços pós-colheita mantiveram a renda normal no período de pandemia. Como isto é ofertado na região? No caso do crédito, a maior parte é de bancos do estado, mas e a infraestrutura de insumos e de serviços pós-colheita?
A pesquisa mostra que famílias que têm mais terra e mais acesso a recursos e aos materiais disponíveis, assistência técnica e crédito produzem muito mais, e confirma que o caminho correto é dotar as famílias de água para beber, de água para a produção, construir estratégias de bancos e de casas comunitárias de sementes crioulas e construir estratégias de circuitos curtos de comercialização, como feiras agroecológicas, espaços de troca, espaços de comercialização, como bodegas e quitandas.
Mas o que temos na maior parte das vezes é o não acesso.
O crédito, sobretudo o Pronaf, quase desapareceu. Antes tinha linhas do Pronaf específicas para o semiárido, para agroecologia, para a juventude, para as mulheres. Mas essas políticas estão basicamente desmontadas e os agricultores têm muita dificuldade de conseguir, porque o governo não diferencia mais por tamanho de propriedade.
Uma das formas de obter crédito é pelo assessoramento técnico [dentre os critérios para solicitar crédito, há o de participação de programas de educação no campo, por exemplo], tanto estatal quanto das organizações que fazem esse acompanhamento gratuitamente. Se você desmonta essa estrutura [ou seja, diminui a disponibilidade de formações técnicas na região e a presença de pesquisadores e profissionais que possam auxiliar o agricultor a trabalhar melhor sua terra], você prejudica o agricultor, que não pode construir outras rendas. A pesquisa reflete a questão da pandemia: a pessoa não tem crédito, saiu de uma grande seca, finalmente vai ter água, tem parte das suas sementes guardadas e agora que poderiam voltar a plantar, não conseguem comercializar.
É muito difícil mensurar porque são vários desmontes. A própria política de água está sendo desmontada: parou no início do governo Temer [no orçamento para 2017, o governo cortou em 92% a verba para implantação de cisternas no semiárido] e o governo Bolsonaro tenta boicotar qualquer ação de água no semiárido [em 2020, o Programa 1 Milhão de Cisternas teve o pior desempenho desde sua criação, em 2003].
Se você apresenta serviços de assistência técnica, disponibiliza crédito e terra a essas famílias, elas não precisam ser beneficiárias de programas de distribuição de renda. Com acesso à água para beber e para produção, as famílias deixam de precisar de assistencialismo para serem famílias que produzem alimentos e geram riqueza para a região. Esse estudo que representa 200 mil famílias do semiárido prova que em plena situação de pandemia quem teve água para a produção teve geração de renda.
Olhando para os resultados dessa pesquisa e para a realidade do Brasil hoje, em que a agricultura familiar fica cada vez mais sem apoio, é possível que essas comunidades sigam resilientes com estas práticas por quanto tempo?
Passamos pela maior seca da história que temos conhecimento desde a chegada dos portugueses, e mesmo com a falta de água não se viu êxodo rural, não se viu saque, não se viu crianças desnutridas. E não se viu porque essas famílias tinham água para beber, não precisavam sair de suas casas. Essa água pode ser coletada de chuva, se não tem chuva, distribui-se via caminhão pipa. Nunca haverá um rio ou riacho permanente na região do semiárido, mas pode haver sempre água se eu construir estratégias para ampliar o armazenamento de modo que a água não evapore, sobretudo com cisternas, e com a construção de estratégias para criar sistemas integrados de acesso à água de qualidade. Se essa política avançar, a vida no semiárido muda.
Mesmo que os dados da pesquisa mostrem que parte dos entrevistados ampliou sua produção e que vive agora uma situação de segurança alimentar, essas pessoas tiveram grandes dificuldades. O Estado não estava ali para desempenhar sua função. Eles foram construindo suas estratégias, como venda por WhatsApp e Facebook, por exemplo. Foi o poder criativo dessas famílias que as fez sair do isolamento. Esses elementos a pesquisa não conseguiu medir por causa do tempo.
Tem-se que ampliar e permitir acesso ao Plano de Aquisição de Alimentos, permitir que comercializem seus produtos e os beneficiem para agregar valor. Estamos falando de quem gera o alimento consumido naquela região, de quem gera segurança e identidade alimentar. É preciso retomar a caminhada do que chamamos de ação de convivência no semiárido.
Sem pensar no cenário desolador do Brasil de hoje, que ações do Estado você considera que os resultados deste estudo poderiam inspirar?
O país está num momento de desmonte. Essa região do semiárido teve poucas políticas públicas, além do Programa 1 Milhão de Cisternas. Hoje há 1,2 milhão de cisternas. E a ASA tem uma ação de segunda água, são 200 mil famílias no semiárido que são privilegiadas se comparar às outras, porque elas têm a segunda água para usar na produção. Se essas famílias não precisam da assistência do Estado, qual o problema delas? Elas não precisam acessar crédito sempre, mas precisam vender sua produção.
O desmonte do Programa Aquisição de Alimentos (PAA) e do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) tem um impacto significativo na vida dessas famílias. Imagine para as outras famílias, as que não têm acesso de água para produção? Tem famílias que precisam também de acesso à terra, porque se construírem uma cisterna em seu terreno ficam sem espaço para plantar.
ANTES DE VOCÊ IR EMBORA
É inevitável pensar que, se uma região esquecida pelo Estado como o semiárido brasileiro viceja ao usar saberes tradicionais, imagine a potência que esse sistema alimentar baseado em sementes crioulas teria em uma região hidricamente favorecida e com políticas do governo?