#3 | receita para preparar uma mulher
sobre direitos, deveres, obrigações, prazeres e esperança
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[⚠️ aviso: esta edição contém links afiliados, o que significa que eu recebo uma pequena comissão caso você compre o livro indicado 🙃]
EM BOA COMPANHIA
Belíssima safra de newsletters chegando: em agosto, Nila Maria lançou o orgânico – comida sem agrotóxico e conteúdo sem algoritmo e Carolina Dini, o jornalzinho cebola na manteiga. Conheci ambas enquanto ministrei o curso Como Escrever Sobre Comida; a Carolina na turma 1 e a Nila na turma 2. A turma 1 também teve a presença da Mariana Bragança, que já publicava a news tasqueando quando nos conhecemos. Se eu fosse você, assinava as três a-go-ra.
Feliz ao ver a slow web cada vez mais slow. Devagar e sempre!
MAIS LOURENCE
Para quem gostou de ler a entrevista com a Lourence Alves da edição extra, enviada em meados de agosto, tenho duas indicações para apreciá-la em áudio:
no episódio 41 do podcast A Hora do Chá, dividido entre a entrevista e um episódio menor com dicas;
no episódio 30 do podcast Jornal do Veneno, da minha amiga Juliana Gomes, do Cozinha Saudável pra Todos.
ESTABELECENDO O CLIMA
Todo momento é um bom momento para ouvir uma letra de Chico César. "Mulher Eu Sei" na voz de Caio Prado e Johnny Hooker é a minha escolha pra desobstruir seu duto lacrimal, caso você precise.
RECEITA PARA COZINHAR UMA MULHER
sobre direitos, deveres, obrigações, prazeres e esperança
Desconheço o que seja ser mãe – construir o amor, reconhecer a cria –, mas tenho sensibilidade para notar as mudanças que a maternidade causa: o cansaço, o receio, a ternura. Talvez eu nunca seja mãe. Vejo com mais facilidade um futuro com crianças do que dividir casa com um companheiro novamente. Cuidar de quem ainda não se cuida sozinho me parece algo inescapável enquanto mulher neste mundo, em que o cuidado e a responsabilidade sobre o outro nos é estimulada desde que nós não sabemos nos cuidar sozinhas.
Enquanto escrevia o rascunho deste texto, em 16 de agosto, alguns mililitros de lágrimas secavam sobre minhas bochechas. Tive uma crise silenciosa de choro durante o yoga nidra. Deitada no chão na posição do cadáver, assisti a uma cena inédita que apareceu como se fosse uma memória (uma visão?), e da qual não consegui desviar: eu chegava ao apartamento da minha melhor amiga e estava prestes a pegar sua filha recém-nascida no colo.
Eu só vi a bebê por fotos, é claro, e são quase dois anos sem ver minha amiga ao vivo. Essa visão inesperada no meio do processo de relaxamento me fez desabar. Foi um choro de felicidade, porque sinto que o nosso amor, um amor de quase duas décadas, tornou-se exponencialmente maior. Enquanto chorava, sentia que o universo havia me permitido sentir de uma só vez o amor de um século inteiro em poucos minutos. E esse amor súbito e estrangeiro se deve à uma nova pessoa no mundo (!) – uma pessoinha que ainda tem a moleira aberta.
Eu amei imediatamente o pequeno ser humano desde sua gestação. Um pequeno ser humano cuja personalidade não conhecemos e com quem já sinto tanto medo de errar. Sentir esse amor me fez chorar a ponto de escorrerem duas lágrimas pelo canto do olho até o ouvido direito enquanto eu tentava permanecer imóvel em savasana. Quando nos sentamos para finalizar a meditação, as poças salgadas que se equilibravam na órbita dos meus olhos caíram sobre o tapete emborrachado. Voltando ao mundo real, , a 700 km da minha amiga, o choro passou de um êxtase de completude para um terror de viver numa realidade feia. A esperança que vamos ensinar à pequena será a nossa maneira de blindá-la contra um mundo que não é gentil com mulheres.
Ser mulher – sentir-se mulher, performar o feminino, identificar-se com o gênero – é ser um alvo. Ninguém escolhe ser um alvo: transformam-nos em alvo. Físico, psíquico, emocional, social, econômico.
A comida desempenha um papel diferente na vida das mulheres. Aprendemos a cozinhar antes de conseguirmos desenvolver nosso gosto e preferências. Somos socializadas para nos alimentarmos e nos mantermos nutridas, e não para ter prazer comendo. Sentimo-nos responsáveis sobre a saciedade alheia, mesmo que não estejamos na condição de anfitriãs. Colocamo-nos automaticamente no papel de servir e não de sermos servidas. É comum conhecer mulheres que dizem gostar de cozinhar, mas que não gostam de cozinhar apenas para si mesmas.
A cozinha é onde muitas de nós experimentamos algum tipo de liberdade – dominar uma receita nos incentiva a testar novas combinações de ingredientes e a alterar processos. É, também, lugar da tarefa sisífica de preparar o almoço diário. Fazer bolo pode ser um hobby; preparar a refeição principal de uma família todos os dias, não. É algo ao qual as mulheres se habituam, gostem ou não. Mulheres que amam cozinhar não amam manter seus familiares alimentados – pelo menos não somente isso.
––– Este parágrafo poderia falar sobre como o período de escravidão no Brasil contribuiu para que as mulheres negras sejam vistas como nutrizes, babás, preparadoras de refeições, como alguém que deve deixar a mesa sempre pronta… na casa dos outros, enquanto seus filhos historicamente crescem sem ter tempo de qualidade com a mãe. Também poderia levar a um parágrafo sobre como as mulheres são vistas como pertencentes à cozinha doméstica e não à cozinha do restaurante. Ou ainda: poderia trazer uma cena que ilustrasse o comportamento de uma mulher e de um homem diante do comensal. Enquanto mulheres perguntariam se você gostou, se estava salgado, se precisaria de mais tempo no forno, os homens provavelmente reagiriam apenas com uma pergunta retórica – "está muito bom, hein?" –, sorridentes e orgulhosos. Mas não haveria espaço o suficiente para tanto, por isto começo o próximo parágrafo com uma generalização. –––
Durante a maior parte do tempo em que a Humanidade tem dominado o fogo na Terra, as mulheres foram obrigadas a cozinhar. Enquanto millenial, cresci acostumada a ver apresentadoras de televisão que cozinham, a almoçar em restaurantes que emulam a casa da avó de alguém, a conhecer novas chefs de cozinha que se destacam por seu trabalho em restaurantes contemporâneos, que recebem um destaque à parte em premiações de alta cozinha, como o prêmio de melhor chef mulher do 50 Best Restaurants. Mulheres no topo, esse papo todo que pode soar facilmente como feminismo branco liberal.
As décadas passam lentamente para as mulheres, que ainda podem sentir o cheiro da tinta dos decretos que lhes permitiram votar, abrir contas bancárias em seu nome e se divorciarem. Se apertarmos um pouco a vista, reconheceremos muitas de nós ainda alijadas dessas conquistas do outro lado da rua ou do outro lado do oceano.
Seguem nos avaliando por quantos quilos conseguimos levantar – considerando as caçarolas de um restaurante e não as crianças em nossas barriga ou no colo. Partem do pressuposto de que somos fracas e pouco determinadas, embora essas mesmas pessoas gostem de repetir que suas mães são as melhores, as maiores, mulheres fora de série.
Homens que pensam e falam sobre cozinha podem ser gênios – concedo este adjetivo a eles. Mas a cozinha não é algo que eles criaram e dominaram no decorrer dos séculos. Homens não sabem o que é superar o sentimento de obrigatoriedade ligado a uma atividade cotidiana e transformá-la (ainda que parcialmente) em um momento de prazer e de autoconhecimento.
O que nos traz às mães nunca perdoadas: as que não cozinham.
Talvez a mãe que não saiba fazer um arroz tenha algo a nos dizer sobre o amor. A mãe que manteve seu filho vivo, alimentado, feliz, mas que para isso não aprendeu a cozinhar incrivelmente – esta mãe foi suficiente. Ela não sabe preparar sua sobremesa favorita, mas garantiu um lar. Nem toda comida é afeto, mas sacrifícios pessoais e pais tentando acertar, sim.
Apesar de todos reconhecermos o carinho e o cuidado que uma refeição quente contém, a ideia de que comida é um veículo de amor materno inequívoco é questionável. Na maioria das vezes, cozinhar é uma atividade que as mulheres têm de repetir diariamente anos a fio, de modo que irão dominá-la mais cedo do que a outras dinâmicas familiares e de relacionamento. Gostamos de pensar que comida é uma fonte de prazer, que comida significa casa, porque sempre a pensamos de maneira nostálgica; e a nostalgia é uma prisão. Muito confortável, mas uma prisão.
Inspirada pelo livro de Dianne Jacob, Will Write for Food, criei um workshop de 12 horas chamado Como Escrever Sobre Comida. Fechei duas turmas com 40 pessoas em cada, e as aulas foram realizadas num intervalo de dois meses. Do total de inscritos, contei 76 mulheres. Talvez nem metade delas tenha filhos – poderiam estar grávidas ou com crianças pequenas, ou mesmo filhos adolescentes e jovens adultos. Algumas participaram com seus bebês no colo.
Esta pequena amostra de mulheres, com ou sem filhos, estava procurando coisas muito similares. Elas queriam trabalhar seus sentimentos através da escrita gastronômica, perpetuar em palavras o que a comida significa para a formação de sua família através de gerações, desdobrar em parágrafos o intangível e o abstrato que envolve cozinhar – sentimentos eternos e maltratados, como o amor, o afeto, o cuidado. Ou ainda: queriam ensinar outras pessoas (leia-se: mulheres) a cozinhar, a se compreenderem por meio do processo culinário, a alimentarem saudavelmente seus filhos. Elas estavam escrevendo para se comunicarem com os outros. Com as outras.
Já os homens queriam melhorar seu domínio técnico ao escrever sobre restaurantes.
Quando criei o workshop, pensei que era isto o que todas as pessoas queriam aprender. Sou uma mulher, mas às vezes me sinto como um homem branco de classe média deve se sentir: livre para pensar em minha carreira, decidir o que fazer em meu tempo livre, investigar meus desejos. E tenho meu freezer abastecido a cada um ou dois meses pela minha mãe.
Nasci quando minha mãe tinha acabado de completar 21 anos – uma menina grávida e feroz. Sua história é a de uma mulher que não pôde deixar o medo derrubá-la, porque conhece a solidão esmagadora que vem com a queda. Então ela se especializou em se mostrar determinada, mesmo quando assustada, porque se é possível escolher entre a pena social destinada às mulheres consideradas fracas e às consideradas inflexíveis, ela prefere ser julgada pela segunda.
Com essa descrição, até parece que minha mãe é um sargento. No entanto, o estereótipo que melhor a descreve é o da mãe que ama cozinhar para os filhos. Há quartas-feiras em que ela almoça aipim cozido com manteiga porque não quer pensar no que preparar. Porém basta chegar a véspera de ela e meu pai virem nos visitar que ela passará o dia na cozinha preparando carne de panela, pudim, porções de béchamel congelado (“pra quebrar um galho”, ela diz), lasanha, sopa. Insone, ela tentará dormir à 1h para que eles peguem a estrada menos de seis horas depois. Ela vai dizer, de forma dramática e cômica, que fez tudo isso para nós, e que espera que seja o suficiente. Uma semana depois ela ligará para saber – desta vez de forma séria – se a comida já acabou.
As mulheres, em suma, querem falar sobre comida e não apenas cozinhar. Querem cuidar de seus filhos e falar sobre eles. Sacrificam a comunicação, muitas vezes, para dar conta da louça, para organizar o quarto. Abrem mão do tempo que teriam para si porque mesmo cansadas, sentem um prazer maior ao permanecer ao lado da cama de sua prole e olhá-los adormecidos. Há séculos mulheres estão exaustas, mas seguem adiante, aprendendo, repetindo e ensinando. E conseguindo, apesar dos homens.
Este texto destoa do que eu pretendia ter feito, que era embasá-lo com dados e estudos. Mas este espaço é também a cozinha em que posso experimentar sem receitas – e eu estava precisando tirar esta ideia do meu freezer há tempos. Servidos?
Dias antes de finalizar esta newsletter, uma série de (não há outra forma de dizer isto) merdas aconteceram. Marcius Melhem, acusado de assédio sexual por oito mulheres, proibiu a revista piauí de publicar uma nova reportagem sobre o assunto; uma amiga que denunciou seu abusador em 2019 e está proibida pela Justiça até de mencionar o caso publicamente teve agora a movimentação de sua conta bancária bloqueada; e um energúmeno sacou uma arma em meio a um protesto de mulheres contra a violência doméstica em Natal. Teve mais, claro, mas também teve esta foto:
Esta foto me fez voltar a pensar na catarse de lágrimas de umas semanas atrás.
Horas antes da epifania chorosa na yoga, eu havia lido rapidamente os relatos de mulheres afegãs sobre a tomada do governo de seu país pelo Talibã. Tenho dedicado pouco tempo para as notícias, caso contrário deixo de ser uma adulta funcional. Amigas mencionaram pessoas se pendurando em um avião, e tive engulhos imaginando a cena.
Esta foto de Johanna Geron, no entanto, me fez voltar a ter esperança, apesar de saber que o mundo seguirá cruel para com as mulheres – não nos perdoam por aguentarmos tanto.