[entrevista: Ravi Orsini] controvérsias no vegetarianismo ambiental
"Deixar de comer carne adia o apocalipse ambiental em dezenas de anos. Reduz o impacto, mas não resolve a situação", diz o gestor ambiental
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Em A Divina Comédia, Dante Alighieri encimou a porta do Inferno com a frase "Deixai toda esperança, vós que entrais". É uma sentença que rejuvenesce a cada século e hoje, 700 anos depois da morte do escritor florentino, seria ideal para saudar quem chega à Terra. O Diabo que se vire para encontrar uma nova placa.
Durante a COP26, conferência sobre o clima da Organização das Nações Unidas (ONU) realizada em Glasgow, na Escócia, entre os dias 1º e 12 de novembro de 2021, o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, mencionou em seu discurso de abertura que o nível do mar dobrou nos últimos 30 anos, os oceanos estão mais quentes do que nunca e Floresta Amazônica emite mais carbono do que absorve.
A humanidade bateu recorde na emissão de gases de efeito estufa – grupo do qual fazem parte o dióxido de carbono (CO2), o metano (CH4) e o óxido nitroso (N2O) – chegando, respectivamente, a percentuais de 149%, 262% e 123% acima dos níveis pré-industriais. Ilustrando as reportagens sobre aquecimento global acelerado pela atividade humana estão imagens de carros e fábricas soltando fumaça e vacas pastando – às vezes, vacas pastando em frente à fumaça de queimadas.
[tenho uma sugestão para quem forjar o novo portal da Terra: grifar em maiúsculas a expressão TODA ESPERANÇA.]
Não é o caso de advogar pela desindustrialização: este é um ponto em que o Brasil já se encontra, e por isso há tanta vaca e soja nessas paragens. Mas é o caso de pensar em estratégias para diminuir a emissão desses gases e, assim, adiar em alguns anos o fim do mundo.
Na esfera de ações individuais está a redução do consumo de carne, do uso de combustíveis fósseis e da cobrança por políticas públicas mais conscientes – parte delas, aliás, passa por um controle de processos da pecuária (e não por obrigar o cidadão a se tornar vegetariano). Conversei sobre a primeira prática com Ravi Orsini, pesquisador, cientista e gestor ambiental pela Universidade de São Paulo, mesma instituição em que concluiu seu mestrado, em 2019.
O título de sua dissertação é Vegetarianismo ambiental: estudo das controvérsias na relação entre vegetarianismo e emissões de gases de efeito estufa e o trabalho está disponível aqui – na página 124, por exemplo, há uma tabela com estratégias para mitigar as emissões de gases de efeito estufa na pecuária.
Ravi mapeou parte das controvérsias presentes no debate sobre vegetarianismo (na página 136 há um quadro resumindo as sete principais). Como todo trabalho acadêmico é um recorte temporal e espacial, Ravi debruçou-se sobre algumas das questões climáticas. "Há inúmeras relações entre o vegetarianismo e questões ambientais, e mesmo dentro do meu escopo, as sete controvérsias que encontrei foram as que eu tive tempo para identificar e conectar em minha pesquisa. Não são todas as controvérsias que existem", explica.
Vegetariano há décadas, Ravi já foi ativista pela causa, participou de movimentos e de grupos, mas foi na ciência ambiental que se encontrou. Em sua pesquisa, usa o conceito de vegetarianismo ambiental para apresentar um caminho para a sustentabilidade alimentar, podendo se dar pela abstenção ou redução do consumo de alimentos de origem animal na dieta humana por motivações de caráter ambiental (página 54).
"Se parássemos de comer carne, teríamos muita terra agricultável, porque 75% das áreas são destinadas à produção de animais e grãos para alimentá-los. Mas a fome não tem a ver com a quantidade de alimento produzido. Fome tem a ver com desigualdade social, e não tem como tirar isso da equação", explana. Conversamos por telefone por duas horas e editei nossa conversa para caber nessa newsletter.
Houve algo que te surpreendeu durante a pesquisa?
A magnitude dos impactos ambientais da pecuária em relação a alternativas dos produtos de origem vegetal: de toda a terra agrícola do planeta, 25% é para produção de alimentos de origem vegetal, e o restante é para produzir alimentos para animais ou pastagem. Para cada R$ 1 milhão de receita proveniente da pecuária extensiva no Brasil, tem-se R$ 22 milhões de impacto ambiental que não são compensados, muito menos contabilizados no preço final. Se pegarmos a soja, outro gigante da agroindústria, essa cifra de impactos ambientais não chega a R$ 3 milhões (página 52).
Nesses impactos ambientais estão as próprias emissões dos gases de efeito estufa que agravam o aquecimento global, o desmatamento, as queimadas, a poluição atmosférica, a poluição das águas… a pecuária é uma das indústrias que mais poluem água no Brasil.
Há a degradação do solo: desmata, queima, planta capim e coloca os bois para comer esse capim num super pastoreio. Isso acaba com a cobertura vegetal do solo. O gado pisa e compacta o solo, o que prejudica trocas gasosas e a infiltração de água, que pode levar à desertificação em áreas mais quentes. Quando você grila uma terra, há um impacto na biodiversidade pela perda de habitat dos animais ao abrir pastagem e pela caça dos fazendeiros para eliminar predadores. Por exemplo: próximo do bioma amazônico vai ter onça, e os fazendeiros saem para caçar as onças.
No Brasil, a pecuária é a atividade humana que mais ocupa território. A agricultura produz muito mais alimento e caloria por metro quadrado em cerca de metade da área que a pecuária necessita.
Tem pontos que não são tão óbvios. Os rebanhos de ruminantes no Brasil têm uma emissão direta de metano – eles consomem pastagem e arrotam metano. Temos mais cabeças de gado do que pessoas no Brasil, e para cada molécula de metano emitida, há um impacto equivalente ao de 72 moléculas de dióxido de carbono. Outras emissões diretas são os dejetos dos animais. Uma vaca pode produzir até 50 litros de excremento diário, o que gera o óxido nitroso, e cada molécula de óxido nitroso equivale a 310 moléculas de dióxido de carbono.
As contribuições indiretas são o desmatamento e a queimada para abertura de pastagem, que é a chamada mudança de uso do solo. Em uma década, 80% do desmatamento e de queimada no Brasil foi para uso de pastagem, sobretudo para a pecuária bovina. O desmatamento e a queimada geram monóxido e dióxido de carbono como gases principais.
Além disso, há outra contribuição indireta, que é a produção agrícola para alimentar animais, em que também há o desmatamento e queimadas para abrir a pastagem agrícola que gerará os grãos; a fertilização dessa agricultura com compostos nitrogenados que vão emitir o óxido nitroso. Todo o sistema de transporte e de refrigeração da carne também: a quantidade de carne produzida no Brasil precisa de um transporte refrigerado e com isso você tem a emissão de monóxido de carbono.
A demanda mundial por carne deve dobrar até 2050 impulsionada pelo desenvolvimento de países do Brics, especialmente da China, enquanto nações menos industrializadas, como o Brasil, diminuem o consumo de carne pelo mesmo motivo: econômico. O ônus da produção, no entanto, fica com a gente. Você identifica alternativas para lidar com essa situação que não sejam individuais?
Há de fato esse crescimento do consumo de carne nos Brics e em alguns países do continente africano. Apesar de essa crescente ser assustadora, os países ditos desenvolvidos atingiram um teto de consumo de carne. Vários estudos mostram que conforme a renda cresce, cresce também o consumo de carne. Varia de lugar para lugar, mas é uma regra geral no mundo.
É preocupante por causa da discrepância que falei: para produzir alimento para o animal, o impacto cresce desproporcionalmente no consumo de recursos. Dito isso, a exportação é um problema, mas 80% da carne produzida no Brasil é para consumo interno. 20% parece pouco, mas como o volume é grande, faz muita diferença.
Deixar de comer carne adia o apocalipse ambiental em dezenas de anos. Reduz o impacto, mas não resolve a situação.
Vejo dois níveis de solução: um superficial, remediativo; e um estrutural. No primeiro nível, uma coisa óbvia seria ter tanto sistemas quanto políticas públicas que auxiliassem as pessoas a reduzir o consumo de carne; ter sistemas legais, políticas públicas e mecanismos que atuassem nos impactos ambientais, como maior fiscalização para o desmatamento de modo a coibir o desmatamento para pastagem, que fosse oneroso mesmo. Tem quem fale em taxação climática sobre a carne, que seria colocar um imposto para o consumo. Esta possibilidade não consegui estudar a fundo.
Indo para o nível estrutural, muita gente diz que o Brasil é corrupto e que isso é um problema doméstico, mas na verdade não é. Na dissertação, apresento estudos que mostram que o dinheiro que financia essa degradação ambiental e esse sistema pecuarista e agropecuarista industrial como um todo vem de fora. Esse dinheiro, rastreado até paraísos fiscais, vem de países europeus. Quem está ganhando com isso não está no Brasil. A discussão estrutural considera que não é só diminuir o consumo de carne, mas também envolver o sistema econômico de exploração de recursos básicos no Brasil, toda essa rede de financiamento de lobby dessas empresas e de fluxo de caixa que vem de países desenvolvidos. O ideal seria que essas soluções, a remediativa e a estrutural, fossem combinadas.
Nas conclusões de sua dissertação, você indica que a dieta à base de plantas é a melhor opção para, individualmente, começar a mitigar o impacto. Mas, de acordo com as escolhas de ingredientes e de procedência, isso pode ser só um pouco menos pior, certo?
Eu não recomendo individualmente, mas endosso a recomendação dessa dieta. Por mais otimista que a gente seja, nem todo mundo vai querer virar vegetariano. Tem lugares em que discutir a redução do consumo de carne significa impactar a segurança alimentar. Não são os centros urbanos. Nem todo mundo vai parar de consumir carne, nem todo mundo deve, mas ainda assim é necessária uma direção. E essa direção tem de ser menos carne. O conceito dieta à base de plantas engloba os diferentes tipos de redução no consumo de carnes, inclusive o vegetarianismo.
Consumir menos carne não é a solução final. É uma mitigação de impacto significativo e é o ponto de mudança de consumo mais rápido através da alimentação, mas não é uma solução estrutural. Se a gente permanecer consumindo a partir da agroindústria, não funciona: precisamos consumir alimentos locais, de produção familiar e fomentar o comércio justo. Um exemplo muito usado é o da quinoa, que teve um impacto negativo social nos países andinos produtores, porque foi exportada massivamente e o preço para os habitantes tem subido.
Quando falamos de vegetarianismo ambiental não estamos falando de uma realidade que abarca a caça de subsistência ou a pesca artesanal. Quais as outras "modalidades" que não se encaixam nesse caso? Um rebanho familiar?
Sempre que falo do vegetarianismo ambiental, estou descrevendo um recorte da crítica vegetariana, de pessoas que pararam de comer carne por causa dos impactos no meio ambiente. Os veganos têm como questão primária a ética em relação aos animais, mas também está a questão ambiental.
Uma das conclusões da minha pesquisa é que toda essa crítica ambiental do vegetarianismo só faz sentido nesses sistemas industriais que são impactantes e dos sistemas de consumo em larga escala que cria essa demanda de querer consumir carne três vezes ao dia.
Onde essa crítica do vegetarianismo ambiental não faz sentido: em todos os sistemas em que os animais são produzidos e consumidos em pequena escala, localmente, em que aquele microambiente vai absorver os impactos. Há locais em que a segurança alimentar da população depende daquela produção animal. Tem locais, por exemplo, em que o solo não permite uma produção agrícola, apenas pastagem, ou locais em que você só tem gelo, como o povo inuíte. Populações ribeirinhas que praticam pesca de subsistência, populações indígenas de pesca e de caça de subsistência.
Mais próximo a nós, temos nossos avós e bisavós, para quem mora em área rural. Dificilmente tinha carne bovina todo dia. Quando matavam o boi, salgavam a carne e tentavam conservar por muito tempo. Tinham diariamente carne de impacto reduzido, como galinha, e nem sempre todo dia. Se você está lendo essa entrevista, você provavelmente não se encaixa nessa exceção.
Você lista também os obstáculos para adotar uma dieta baseada em plantas e os "carnivorismos alternativos". O que você identifica como boas práticas dentro dessa alimentação que não é (ou nunca será) totalmente livre de produtos de origem animal?
Carnivorismos alternativos é um conceito da nutricionista e socióloga Elaine de Azevedo. Isso é outro tópico importante: esses carnivorismos alternativos (páginas 35 e 129) levam a pecuária sustentável, ou seja, de sistemas de produção que são menos impactantes e, em muitos casos, até benéficos.
Não tem como relativizar: esses sistemas existem e são possíveis. Na pecuária sustentável há a pecuária intensiva, que reduz a quantidade de desmatamento e otimiza o uso de pasto. Há críticas, e essa é a que eu considero menos sustentável. Há menos pastagem, mas o impacto do desmatamento vai para a agricultura: você vai precisar de áreas gigantes para produzir grãos e cereais para alimentar os animais, e o impacto muda de direto para indireto. Como o meu foco é ambiental, eu não misturo essas questões éticas porque aí seria outra dissertação e outra pesquisa.
Nada garante que a pecuária intensiva não vá querer aumentar o tamanho do rebanho e assim aumentar a emissão de dejetos e de gases em uma mesma área. Essa é a saída mais problemática e é onde a indústria tem apontado cada vez mais.
Eu coloco o futuro em outra saída. A mais sustentável seria o sistema extensivo baseado em agrofloresta com pasto, que absorve muito os impactos localmente. Não diria nem que é uma limitação, mas tem um detalhe importante: esses sistemas extensivos têm uma produtividade menor que os extensivos com desmatamento. De um jeito ou de outro, precisamos consumir menos carne, parar de comer carne três vezes ao dia.
Eu acredito que dentro desses carnivorismos alternativos, a carne no futuro que a gente vai consumir terá de vir desses sistemas agroflorestais, para ser consumida uma ou duas vezes por semana.
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