#11 | queijos no lixo: o que dificulta a produção em pequena escala no Brasil
descarte de alimentos de origem animal sem selo de inspeção é resultado de uma política ainda recente; municípios têm autonomia para formular suas legislações, mas nem metade desenvolveu o serviço
Não foi uma única, nem uma centena de vezes que isto aconteceu nos últimos anos: peças de queijos artesanais, por falta de um registro, foram apreendidos e levados a um aterro sanitário para serem destruídos – geralmente por incineração. Os casos com mais repercussão foram o de Roberta Sudbrack (160 quilos de queijos e linguiças artesanais, que a chef serviria no festival Rock in Rio), em 2017, e o dos 120 quilos de queijos da fazenda Lano-Alto, em 4 de julho de 2021.
No primeiro caso, os produtos tinham selo de inspeção estadual (SIE), mas estavam sendo comercializados fora de seus estados de origem, o que requeria um selo de inspeção federal (SIF) – daí a apreensão. No segundo caso, uma denúncia fez com que fiscais da vigilância sanitária fossem até a fazenda e apreendessem os queijos por não haver um selo de inspeção municipal (SIM). No entanto, o município de São Luiz do Paraitinga, onde fica a Lano-Alto, regulamentou seu SIM 26 dias depois, em 30 de julho de 2021.
Situações como a da Lano-Alto são comuns. "Nos grupos [de WhatsApp] de queijeiros de Minas Gerais, você vê constantemente foto de fiscal juntando queijos e jogando no lixo", conta Bruno Benati, agrônomo e queijeiro da Cuitelo Real. Ao lado do irmão, Enzo, Bruno retomou a produção de queijos em 2016 na propriedade de 20 hectares, em Itapeva, no extremo sul de Minas Gerais. O rebanho, de cerca de 50 animais, tinha 18 vacas produzindo leite naquele mês de maio, quando conversamos por telefone. Na sequência do seu alô, ouço um mugido. "Liga não, tô aqui no meio do mato", fala Bruno.
A produção é de 8 a 12 quilos de queijo por dia. Tanto por área, quanto por tamanho da "equipe" e pelo volume produzido, a Cuitelo Real se encaixa no entendimento de pequena propriedade, segundo definições do artigo 143-A do Decreto 5741/06. Arranjos familiares ou com uma estrutura enxuta de funcionários, com uma produção agropecuária variada entre legumes, hortaliças, gado leiteiro, aves poedeiras ou animais para corte são a base da economia de 90% dos municípios brasileiros com até 20 mil habitantes, como revelou o Censo Agro 2017 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE).
Ter um selo de inspeção municipal é, teoricamente, o registro sanitário mais acessível para o pequeno produtor. "Teoricamente" porque, apesar de ser uma estrutura que o município poderia criar para padronizar a produção de origem animal e garantir a segurança sanitária de sua população, sua implementação não é obrigatória – dos 5.568 municípios brasileiros, menos da metade têm um serviço de inspeção próprio. Isso significa que por todo o Brasil há potenciais queijos e salames de sabores e aromas inexplorados por falta de investimento em serviços de inspeção locais.
A grosso modo, os serviços de inspeção consistem em vistorias de fiscais da vigilância sanitária, em geral médicos veterinários, que verificam instalações e condições sanitárias do espaço em que ficam os rebanhos e das unidades de beneficiamento; as práticas dos trabalhadores ao lidarem com os animais; a higiene e armazenamento dos produtos; a saúde do rebanho; vacinação contra zoonoses; entre outros, além de acompanhar a evolução da atividade, com o monitoramento do resultado de exames e análises laboratoriais e, periodicamente coletando uma amostra randômica para análise.
Em municípios que não emitem o SIM, é comum que a vigilância sanitária aceite rótulos com CNPJ, telefone, responsável técnico do produto, data de fabricação, data de validade, tabela nutricional e endereço do produtor, por exemplo, para a venda em feiras e demais ocasiões de comércio. Mas, na maioria dos casos, espera-se que haja um selo de inspeção estadual ou federal, caso contrário, é da prateleira para o lixo. Em cidades em que há um serviço de inspeção, o produtor não poderia comercializar sua produção de origem animal legalmente fora de sua propriedade sem o SIM.
As políticas de inspeção municipal e estadual foram estabelecidas pela Lei 7889/89, um ano após a Constituição Federal ser outorgada, e miravam na descentralização do serviço, dando autonomia para as instâncias regionais. "A única ressalva é que a legislação dessas esferas não pode conflitar com a federal ao ser menos exigente. Mas podem ser mais exigentes", explica Judi Nóbrega, diretora do Departamento de Suporte e Normas do MAPA (DNS – MAPA). Cada município tem liberdade para redigir as suas normas e exigências, de acordo com a realidade local. Em Minas Gerais, por exemplo, a cultura queijeira disseminada em cidades de todo tamanho faria com que esta atividade fosse olhada com mais atenção pelas autoridades locais na hora de formular a legislação: em alguns casos, pode ser pedida uma análise da matéria-prima para se certificar de que o leite não tem zoonoses; em outras, uma análise do produto final, o queijo, mais a documentação de todo o processo de produção.
Não há um órgão coordenador que estruture a implementação dos selos municipais, nem os governos das unidades federativas têm responsabilidade sobre ou força legal para obrigar os municípios a implantarem um SIM. O MAPA, inclusive, não tem informação de quantos municípios brasileiros têm serviço de inspeção.
A ideia de regionalizar uma regulamentação sanitária é uma mudança de escala: quanto menor o universo observado, melhor se consegue enxergar especificidades.
"A escala municipal pressupõe um contato mais estreito entre produtor e fiscal. Não é para o fiscal ser policialesco, nem afrouxar as regras para a sua comunidade. Ele pode contribuir para o processo, construir a economia local junto do produtor. O produtor não precisa parar de produzir, a depender da pendência. Dá para falar para ele "você precisa adequar esta e esta questão" e aí conversar sobre prioridades e prazos", opina Fabíola Fernandes Schwartz, médica veterinária que trabalha há mais de 30 anos com consultoria de produção orgânica de origem animal e de processamento de alimentos para indústrias alimentícias. "A não ser, claro, que seja uma calamidade pública", ressalva – ela também já atuou em departamentos de vigilância sanitária de cidades pequenas.
Na prática, os relatos de produtores repetem as mesmas questões: informações desencontradas; períodos longos de espera para receber a fiscalização para a emissão do registro; solicitações para alterar pequenos detalhes até a próxima vistoria (sem data marcada), negação da emissão do registro, inviabilizando o produtor de operar legalmente, um período que pode chegar a meses. "O produtor no Brasil já tem o desafio de chegar no mercado e vender seu produto. Não deveríamos colocar tantos obstáculos e entravar o cara que quer produzir. Ele dificilmente tem um capital de giro para ficar parado por tanto tempo", contextualiza Fabíola.
Alguns queijos da Cuitelo Real provavelmente já foram descartados pela vigilância sanitária, mas Bruno não saberia dar detalhes. "As lojas que tiveram problemas não recebem o nosso queijo. Temos bastantes parceiros em Salvador, João Pessoa, Florianópolis, Curitiba e cidades do interior de São Paulo. Mas Campinas e São Paulo capital, onde faria sentido colocar meu queijo para vender porque são próximas geograficamente, não coloco por causa da fiscalização", diz. Nas feiras livres, o volume de queijos é tão pequeno que cabe num carro pessoal, sem necessidade de ter uma van, modelo bastante visado pelos fiscais.
Dos cinco tipos feitos por Bruno e Enzo, três são de leite cru: Cuitelo (de dois a quatro meses); Cuitelinho (maturado por 30 dias); e Casca Florida (similar ao Cuitelo na produção, mas mantido em ambiente úmido para desenvolver fungos e ácaros em sua casca por cerca de 45 dias). Há ainda o boursin e o Graúna (coalhada seca envolta em carvão vegetal e páprica, com Penicillium candidum inoculado na casca para formar fungos brancos; maturação de aproximadamente duas semanas), feitos com leite fervido, e também iogurte, geleias e mel. Os queijos Cuitelinho, Cuitelo e o iogurte conquistaram medalhas nas edições de 2019 dos prêmios Mundial do Queijo e Queijo Brasil.
Suas peças e fatias apareceram em páginas de revistas de gastronomia e nas redes sociais de chefs famosos brasileiros – Sudbrack inclusa. A comercialização dentro da legalidade, por ora, só poderia ser feita dentro do próprio sítio, porque a Cuitelo Real não conseguiu submeter sua produção ao SIM de Itapeva. A cidade aprovou a lei de inspeção municipal em 2015 e tem uma médica veterinária locada na secretaria de saúde, porém Bruno nunca conseguiu agendar uma vistoria em sua propriedade, que foi adaptada seguindo as normas que constam nas diretrizes do estado.
O último contato de Bruno com a Prefeitura de Itapeva foi em março de 2022. Desde então, a Cuitelo Real mudou a direção e foi atrás do registro de agroindústria de pequeno porte pelo Instituto Mineiro de Agropecuária (IMA), com exigências de infraestrutura ainda mais específicas. A Prefeitura de Itapeva foi procurada por e-mail, mensagem e telefonemas para manifestar-se sobre a estrutura e funcionamento de seu serviço de inspeção, mas não retornou com as informações solicitadas até o fechamento desta reportagem, em 3 de junho.
Na lógica da burocracia, quando a instância municipal não pode ou não tem os meios para emitir o selo de inspeção, o produtor deveria subir para a instância superior, e procurar pelo serviço de inspeção estadual (todos os 26 estados brasileiros e o distrito federal têm SIE) ou federal. Mas é aí que a porca começa a torcer o rabo.
Sem o olhar da prefeitura para a produção local, o produtor fica à mercê de uma legislação mais generalista, como nas características da construção das unidades de beneficiamento e na necessidade de construí-las mais distante da residência. “Por costume e aproveitamento, muitos produtores têm a queijaria do lado de casa, em instalações mais simples”, exemplifica Bruno.
Em relação às normas sanitárias, o objetivo é sempre evitar contaminações e foco de doenças, então não haveria motivo para flexibilização nesse quesito. "São adotadas medidas de barreira para minimizar problemas até o produto chegar ao consumidor. Uma dessas medidas é o registro do estabelecimento, porque isso garante que o produtor segue um conjunto de regras de boas práticas e instalações adequadas. Outras barreiras serão a pasteurização do leite, por exemplo, para evitar o risco de desenvolvimento de brucelose e tuberculose, ou pelo menos 60 dias de maturação do queijo, um período que foi comprovado por estudos que tem o mesmo efeito da pasteurização. Essas condições serão exigidas em qualquer serviço de inspeção", explica Judi.
Ao optar por um registro junto do estado de Minas Gerais, a Cuitelo Real terá de alterar parte de suas receitas para que os queijos tenham 60 dias de cura ou sejam pasteurizados. Apesar de ter uma legislação estadual que reconhece o queijo como um símbolo da identidade mineira (artigo 3º da Lei 23.157/18), o entendimento do modo artesanal se contrapõe com o fazer autoral: o jeito de fazer o queijo minas artesanal, se inventado no século 21, dificilmente estaria à venda com seus 21 dias de cura.
"Nossos queijos são receitas autorais, desde adaptações de preparos tradicionais até testes que fizemos e deu certo. Não há uma classificação pré-existente para os nossos queijos", diz Bruno. Sem uma documentação de seus modos de preparo com resultados similares por diferentes produtores – como os queijos tradicionais, feitos há pelo menos um século por todo o estado de Minas Gerais –, dificilmente queijos de leite cru que estejam fora das tradições e denominações de origem passarão pelo crivo dos órgãos fiscalizadores.
A pasteurização descaracterizaria os queijos da Cuitelo Real, matando os microrganismos que transformam o produto ao longo da sua vida e que são responsáveis pela complexidade de sabores e aromas. "Nós vamos registrar o Cuitelo, que se encaixa nessa regra dos 60 dias de cura, e vamos aumentar o tempo do Cuitelinho para completar 60 dias, provavelmente deixando refrigerado. O Casca Florida nós vamos ter que mudar alguns processos", explica Bruno.
No entendimento das barreiras sanitárias, um leite comprovadamente sadio, manipulado em um ambiente adequado, com boas práticas dos queijeiros, ainda não configura o máximo de barreiras possíveis para diminuir o risco de contaminações dentro da unidade de produção. Da porta da fazenda para fora, a responsabilidade não seria mais dele, mas a perda, sim. "No caso de um transporte feito em temperatura errada, uma contaminação por fungo ou bactéria vai se alastrar com muito mais facilidade em um queijo pasteurizado do que no queijo de leite cru, que tem uma série de microrganismos bem estabelecidos para competir por substrato", compara Bruno.
Segundo levantamento da Conferência Nacional de Municípios (CNM) feito em 2017 com 4.743 municípios, 40% deles (1.917 municípios) tinham serviço de inspeção municipal estruturado. Dentre os motivos para a não criação do selo, aparecem os motivos de falta de recursos orçamentários e financeiros; poucos estabelecimentos agroindustriais no município; carência de recursos humanos no setor; e falta de capacitação e informação dos técnicos. No Manual de Orientações Sobre Constituição de Serviço de Inspeção Municipal (SIM), publicado em 2013, as motivações eram similares.
Como alternativa para aumentar o número de municípios prestando o serviço de inspeção e aumentar a quantidade de estabelecimentos regularizados, consórcios de municípios para emissão do SIM passaram a valer desde 2018. Segundo o portal de consórcios da CNM, são 66 consórcios de selo de inspeção municipal, que podem reunir até 30 municípios sob um mesmo selo.
Uma crítica constante dos produtores é a de que, se as exigências da fiscalização municipal e estadual são tão rigorosas e comprometidas com a garantia da segurança sanitária, porque os selos de inspeção SIM e SIE não poderiam valer nacionalmente, como um SIF?
O Sistema Brasileiro de Inspeção de Produtos de Origem Animal (SISBI-POA) é uma estratégia do MAPA para torná-los equivalentes ao SIF. Criado em 2006, como parte do Sistema Unificado de Atenção à Sanidade Agropecuária (SUASA), o SISBI é um programa de adesão voluntária. Nem os municípios, nem os consórcios de municípios, nem unidades federativas são obrigados a se cadastrar no SISBI. E, mesmo depois de cadastrados, não há um prazo para que adiram ao sistema.
Até o final de maio, 23 estados brasileiros e o distrito federal haviam aderido ao sistema, bem como 14 consórcios de municípios (representando 257 municípios) e 31 municípios individuais (de um total de 448 cadastrados na plataforma). Ou seja, apenas 288 cidades dispunham de um SIM que vale como um SIF desde a criação do sistema de equivalências, em 2006. Um pingo no oceano que é o Brasil.
Outra movimentação do MAPA na tentativa de se aproximar das demandas da pequena escala foi a portaria 393 de 2021, que simplifica a adesão dos pequenos produtores de derivados animais ao SIF. Na norma, assim que os documentos do pequeno produtor são aprovados, ele recebe um registro provisório para começar a operar. Tudo é feito digitalmente.
Em até 90 dias após o início de operação, um fiscal de uma das superintendências regionais do MAPA vai até a propriedade fazer a vistoria."A portaria 393 é uma revisão do Decreto 9.013, publicado em 18 agosto de 2020. Para uma legislação federal, ela simplifica até onde é possível para que estabelecimentos de risco baixo obtenham o SIF. Na classificação feita pelo MAPA, a produção de queijos, mel e ovos é de risco baixo", explica Ana Lúcia Viana, diretora do Departamento de Inspeção de Produto de Origem Animal (DIPOA) do MAPA.
Na avaliação de Fabíola, é um sinal de que o MAPA reconhece que a legislação federal anterior era pouco acessível ao pequeno produtor. "Os trâmites burocráticos são semelhantes ao serviço estadual, e depende muito da interpretação e boa vontade do fiscal que vai auditar. Mas é uma via para o pequeno produtor ter um SIF, isso é louvável".
Recebido o registro sanitário, seja ele SIM, SIE ou SIF, e dificuldades não arrefecem. A falta de direcionamento persiste, e é compreensível o motivo de fiscais não se identificarem como conselheiros – a questão é que em muitas localidades, a extensão rural é pouca ou inexistente. Fora da região de atuação forte de um órgão de pesquisa e extensão rural – e especialmente se o cultivo ou rebanho não for tão expressivo economicamente –, o produtor rural tem um mundo de possibilidades diante de si, mas precisa tatear o caminho das pedras quase sempre sozinho. Possivelmente andando em círculos. E descalço.
O Brasil tem 3,9 milhões de estabelecimentos agropecuários classificados como agricultura familiar, o equivalente a 77% das propriedades rurais brasileiras. Esse percentual ocupa 23% da terra destinada à agricultura e pecuária no Brasil. Uma atuação mais robusta e coordenada da extensão rural voltada à essa fatia seria um primeiro passo importante, mas não resolveria tudo. A principal benesse comumente colocada à disposição dos pequenos produtores são linhas de crédito com juros baixos. "Poderia ter vacinação de rebanho bancada parcialmente pelo Estado, por exemplo, porque o setor de produtos de origem animal é estratégico para o Brasil. Esse tipo de política pública fixa o homem no campo e garante o abastecimento local", analisa Fabíola.
O aumento do volume de crédito rural no final dos anos 1990 início dos anos 2000 foi responsável pela expansão de compra de propriedades. A família Ripka foi uma das que aproveitou o momento. Trabalhando há décadas na produção de verduras, legumes e hortaliças arrendando a Chácara Tiniara, em Mandirituba, na Região Metropolitana de Curitiba, a família comprou os 4,9 alqueires em 2001 através do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf). "Uns três anos depois começou a liberar empréstimo rural como benefício e nós nos afundamos de um jeito… vendemos metade da chácara para pagar a conta", relembra Danilo Ripka. "Eu sou um coringa na propriedade. Administração, financeiro, logística, manejo, vendas. Estou presente em todas as frentes depois que meus pais se aposentaram", diz o responsável pela granja avícola, cujo registro sanitário foi emitido pela instância estadual.
Desde 2009, a produção de ovos da chácara é certificada como orgânica e já chegou a ter 4 mil aves. Atualmente, há um lote de 1.150 frangas que "estão começando a pingar ovos" e 650 em final de postura. A diferença do tamanho dos lotes se dá pelas mortes dos bichos: conforme envelhecem, as galinhas morrem naturalmente ou por fatalidades como ataques pelas companheiras. "No pico de postura, qualquer barulho é gatilho pra elas se assustarem e começarem a se atacar. Todo dia eu penduro pasto um pouco mais alto em uma árvore ou no meio do galinheiro para elas gastarem energia pulando para bicar o fardo. Também damos os legumes que sobram da feira, como repolho e abóbora", relata Danilo.
Em quase uma década produzindo ovos orgânicos, a família trabalhou a maior parte do tempo comprando "sobras" de intermediários, e nunca tinha previsão da quantidade de frangas que teriam. Por isso, no final de 2020, Danilo entrou com o pedido de registro para o manejo de aves junto a Agência de Defesa Agropecuária do Paraná (ADAPAR), o que possibilita comprar os lotes diretamente das empresas de genética animal.
O registro saiu em novembro de 2021 e, durante um ano, a família trabalhou para dar conta das exigências. Dentre elas, concentrar os aviários em um ponto da propriedade, livrar-se das galinhas caipiras, fazer arcos de desinfecção de automóveis nos acessos, estabelecer um procedimento de controle de quem entra e sai da propriedade, entre outros. A burocracia também aumentou: novas frangas só podem ser recebidas na propriedade se estiver documentado o envio do lote mais velho para um frigorífico. Antes, com lotes menores, a atividade não se configurava como comércio de aves e os Ripka podiam vender para quem quisessem.
O primeiro lote que precisou ser desalojado nos novos termos tinha cerca de 800 galinhas e revelou mais um gargalo que os pequenos produtores enfrentam. Danilo postou um apelo no perfil de Instagram da Chácara Tiniara em março, quando já estava há semanas atrás de uma solução para o "descarte", termo usado para o abate de galinhas poedeiras. Há meses as galinhas estavam em um espaço separado, sem colocar ovos, mas seguiam sendo alimentadas com a melhor ração e tendo os mesmos cuidados do lote em atividade. Nenhum frigorífico a menos de três horas de Mandirituba comprava lotes de descarte ou aceitava um lote tão pequeno. As galinhas acabaram sendo doadas para um comprador que bancou o frete. A exposição nas redes sociais rendeu uma série de contatos e a estratégia de Danilo será enviar os próximos lotes "de carona" com as milhares de aves de uma granja comercial próxima.
Dos investimentos, exames, análises laboratoriais, taxas e demais custos para estabelecer a empreitada, a oferta mais consistente do Estado a Danilo e Bruno foi o crédito rural. "Se antes a gente conseguia tirar 30% de lucro limpo, hoje para conseguir 10% está difícil, mesmo reajustando os preços", revela Danilo. "Estou estudando Geografia, fazendo esse "seguro" para mim, porque se daqui a três ou quatro anos a coisa não vingar, eu tenho para onde correr", confessa. Crédito apenas não é o suficiente para manter o homem no campo.
"A realidade brasileira, em termos de pequenos produtores e em matéria-prima de qualidade, é sem igual. Nós temos um patrimônio: a avicultura brasileira é importantíssima no mundo e a questão de biossegurança é fundamental para a manutenção dessa cadeia. Mas a produção local, para o mercado interno, não é valorizada", lamenta Fabíola. "Não tem subsídio para manter o produtor no campo, como tem os produtores na União Europeia", exemplifica.
Na Europa, aliás, pequenos produtores de animais são considerados as representações mais autênticas da cultura alimentar local. Queijos de leite cru, embutidos artesanais e ovos de pequenas granjas fazem parte de experiências gastronômicas às quais poucos turistas têm acesso. Do Brasil rural, só os abonados do agronegócio conseguem pagar.